Expedição de Verão - Parte 1
Buenas camaradas
Há aproximadamente cinco anos começava minha primeira viagem de bicicleta, uma experiência que mudou literalmente meu estilo vida. As viagens que aconteceram nesse período foram marcadas por aventuras e histórias inesquecíveis como é possível acompanhar através deste blog.
Em 2006, ainda cursando o segundo ano de História, não tinha a mínima idéia dos caminhos que iria conhecer com aquela decisão de pegar a bicicleta e saber um pouco mais o que me esperava além do horizonte. E foi por meio deste instrumento de locomoção que acabei conhecendo muito mais do que paisagens magnificas. Amizades verdadeiras foram construídas e fortalecidas. Histórias, alegrias e tristezas compartilhadas. Cultura adquirida, sonhos realizados.
A conclusão da faculdade ocorreu em dezembro de 2010. A formatura foi muito emocionante, uma mistura de sentimentos difícil de colocar em palavras. Era um objetivo alcançado e estava feliz por isso. No entanto, era momento de colocar em prática outro plano, morar na praia.
Estava decidido a concluir a faculdade e logo depois ir morar na praia, um sonho que vinha nutrindo há um bom tempo. Sempre fui ligado à natureza, desde pequeno sou fascinado pelas ondas do oceano e talvez por isso morar no litoral com toda sua natureza tenha se tornado uma idéia fixa. Contudo, era preciso resolver duas coisas; o destino e a questão financeira (de novo, ela).
Em 2009, trabalhei praticamente o ano todo e consegui fazer uma certa reserva financeira para passar o ano seguinte apenas estudando. E foi o que aconteceu. Porém, a formatura levou minhas últimas economias. Estava zerado e precisando de dinheiro para, ao menos, conseguir viajar para algum lugar com praia. Existiam duas opções; Florianópolis/SC ou Itanhaém/SP, a primeira havia conhecido em 2006 durante as férias com a família, lugar encantador que faz jus a forma carinhosa como é chamada; Ilha da Magia. Já o litoral paulista era cogitado pelo fato do amigo Marco Brandão residir no município em questão.
A escolha do meu próximo destino foi feita meio pelo acaso. Uma enorme série de coincidências (ou não) definiu qual caminho seguir. Primeiro foi o amigo ciclista Neimar Coser de Foz do Iguaçu/PR que durante um treinamento na Av. Tancredo Neves me disse sobre um tópico no fórum do site pedal.com que havia sido aberto pelo Alexandre (vulgo Jamanta) de São Miguel do Iguaçu (45 km de Foz), disposto a ir à Florianópolis, pedalando. No entanto, era sua primeira viagem e estava com dúvidas sobre várias questões, por isso, sua manifestação no fórum.
Neimar acabou por sugerir que Alexandre entrasse em contato comigo para poder obter maiores dicas sobre cicloturismo. Afinal, morávamos próximos e estávamos com praticamente o mesmo planejamento, algo que aguçou minha curiosidade sobre a viagem que ele pretendia realizar.
Não demorou muito e por e-mail comecamos a trocar as primeiras idéias. Ele estava realmente disposto a seguir viagem, mas não gostaria de ir sozinho por ser sua primeira experiência viajando de bicicleta. Foi quando comentei sobre minha intenção de fazer esse mesmo itinerário, contudo, expus minha condição financeira que impedia de ir para a estrada naquele momento. Eis que me surpreendo na sequencia; Alexandre pergunta o que eu precisava para poder acompanhá-lo.
Sem pensar muito, digo que necessito apenas do dinheiro para o almoço, que seria a maior despesa durante a viagem para Floripa. Também sem hesitar, ele se oferece para pagar a refeição. Estava fechado! Minha mudança seria para a capital de Santa Catarina.
Com esse apoio eu precisaria apenas de poucas provisões no preparo do jantar, estratégia que mostrou-se eficiente em viagens anteriores, sobretudo, com auxilio indispensável do fogareiro. Não teríamos despesa com hospedagem uma vez que montariamos acampamento pelo caminho e eventualmente receberiamos hospitalidade de conhecidos e amigos.
Entre as conversas pela internet, marcamos um dia para comprar em Foz do Iguaçu, alguns equipamentos para a viagem. Alexandre precisava comprar itens de camping e para bicicleta. Pretendíamos ir também ao Paraguai e adquirir produtos mais em conta, no entanto, na ocasião a fila para ingressar no país vizinho estava enorme e nos limitamos a comprar as coisas em território brasileiro mesmo. Recomendei a bicicletaria Super Bike para ver algumas vestimentas e peças. Eu não precisava mais do que uma revisão na Victoria (nome da minha bike). Aproveito e deixo meu agradecimento ao Claudimir Possenti (Miro) e a sua mulher pela competência e ótimo atendimento.
Fiz outras recomendações para o Alexandre, como por exemplo, a respeito do alforje, quase indispensável para a viagem. Assim, também adquiriu um da marca POC igual ao meu. Com essas questões resolvidas era preciso saber se o Alexandre aguentaria o ritmo da viagem. Disse-me que estava treinando aproximadamente 50 km três vezes por semana. Eu vinha pedalando forte desde final de setembro quando comecei um treinamento intensivo para disputar o Desafio 12 horas em Cascavel. Assim, a parte física não era nenhum problema.
Já em relação ao roteiro, boa parte dele estava pronta, era praticamente o mesmo utilizado na Travessia do Paraná que fiz em 2007 quando fui até o litoral paranaense, porém saindo de Marechal Cândido Rondon. O que deveria ser planejado era a trecho entre Curitiba e Florianópolis, além da distância que percorreríamos por dia. Fiz uma planilha completa e mostrei ao Alexandre que concordou sem maiores ressalvas. Afinal, planejei algo que fosse viável e tranquilo para ambos, desse modo, teoricamente a mínima diária ficou em 66 km e a máxima em 166 km.
Planilha da 1ª etapa; Foz do Iguaçu x Curitiba
Planilha da 2ª etapa: Curitiba x Florianópolis.
Visualização do trajeto
Minha pretensão era passar, no mínimo, uma temporada na praia, conseguir um trabalho, juntar grana e depois viajar novamente (destino; Machu Picchu/Peru). Já havia tempos que combinava de fazer isso com alguns amigos, todavia, em nenhuma outra oportunidade isso foi possível. Então resolvi encarar o desafio sozinho. O que eu precisava fazer era arrumar um emprego imediatamente após minha chegada em Florianópolis. Afinal, estava sem quase nada de grana, apenas com os cartões de crédito.
Tensão. Apesar da falta de grana, meu maior medo era de não partir. Duas semanas antes da formatura (22/12/10) uma questão voltou a incomodar, as cólicas renais. Para quem não acompanhou o drama no início do ano passado, resumidamente aconteceu o seguinte; em fevereiro de 2010 fui diagnosticado com dois cálculos renais, um deles obstruindo o canal urinário e causando as terríveis cólicas renais. Foram dois meses lutando contra as fortes dores. Um remédio produzido na Alemanha e a ingestão de muita água conseguiram dissolver esse cálculo. O cálculo que ficou não me traria problemas, segundo a médica. No entanto, em dezembro do mesmo ano, este veio à tona da pior forma possível, as cólicas. Contudo, logo que começaram as dores já tratei de voltar a tomar o remédio importado e muito mais líquido, principalmente água. Em uma semana consegui expelir a pedra. Agora poderia finalmente me formar e viajar em paz.
Quase tudo preparado. Faltava arrumar minha bagagem, afinal estava indo para ficar, deveria ter uma atenção especial para não esquecer coisas básicas, pensando a curto e longo prazo. Por isso, levei mais roupa do que comumente se leva em uma cicloviagem, inclusive, coloquei roupas de inverno (em pleno verão) e separei toda a documentação que poderia ser necessária futuramente. Era hora de partir.
Hora da partida:
Engraçado, estava prestes a fazer minha mudança e as minhas coisas no alforje ficaram prontas apenas poucas horas antes da partida. De algum modo a tranquilidade tomava conta do meu espírito. A data da partida ficou combinada para o dia 26 de dezembro, assim passaríamos ao menos uma das datas festivas de final de ano com a família. Passei o Natal com a minha mãe que fez questão de preparar um almoço especial.
Com a bicicleta extremamente carregada (aproximadamente 35 quilos) me encaminho para o portão de casa, ainda está escuro quando me despeço emocionado da mãe. Com o coração apertado ela sempre me deseja uma boa viagem, embora com a preocupação compreensível de mãe. Acredito que naquele momento não tinha uma noção exata de quanto tempo iria ficar sem vê-la novamente.
Aproximadamente às cinco horas da manhã sigo em direção à BR 277 para encontrar o Alexandre em São Miguel do Iguaçu. Na rodovia que atravessa o estado vou sentindo o comportamento da bicicleta nos primeiros quilômetros. Confesso que o sobrepeso me deixava um pouco preocupado, apesar da confiança na bicicleta. Afinal, em nenhuma outra viagem a carga estava tão pesada. Mas a confiabilidade e segurança nos equipamentos foram comprovadas até encontrar o camarada de viagem no local combinado, 45 km de Foz do Iguaçu. Uma foto para registrar o início da expedição juntos.
A BR 277, uma das mais importantes do estado era muito conhecida por nós dois. Inúmeras vezes pedalei pela mesma. Já Alexandre a utiliza frequentemente em razão do trabalho. No entanto, por mais que se passe por um mesmo caminho várias vezes, nenhuma será igual a outra, pois tudo depende dos olhos de quem vê e sempre existe algo a mais para quem observa atentamente. Assim, vamos seguindo animados, afinal cada um estava a realizar seu sonho. Mas não pense que foi fácil.
No avanço das primeiras horas do dia a temperatura aumenta. No verão do oeste paranaense a sensação térmica da estação só não era maior do que a Serra do Mico, logo após São Miguel do Iguaçu. Mas ainda descansados, ela não foi nenhum obstáculo intransponível, serviu para aquecer o corpo de uma vez.
Vamos conversando e observando as paisagens pelo caminho. Aos poucos vamos ganhando altitude e o registro fotográfico é inevitável. Para uma região repleta de plantações extensivas, ver um pouco de mata, incluindo, nativa (Pinheiro do Paraná) é muito bom.
Já esperávamos a serra do Castelinho em Matelândia, com certeza era a parte que exigia um pouco mais de força no primeiro dia. Foi nossa primeira parada para tomar uma água e comer algumas bolachas. A subida íngreme é perigosa no sentido em que seguíamos pois não existe acostamento, apenas um pequeno espaço que mal cabe uma bicicleta. Com o trânsito intenso a solução foi pedalar espremido e com muita atenção. Alexandre procurou uma estratégia própria; utilizar o acostamento da mão contrária, algo que não procuro fazer. Neste sentido os carros estão na descida da serra, fazendo curva fechada e comendo parte do acostamento, logo, a segurança acaba sendo comprometida. Conversei sobre isso com ele e em nenhum outro momento da viagem vi essa mesma atitude.
Castelinho: Serra antes de Matelândia
Paisagens
Ambiente bucólico.
As subidas do primeiro dias.
Uma sombra para descansar um pouco.
Nossa partida no dia 26 era um justamente o domingo pós-natal, assim, a rodovia foi ficando ainda mais movimentada, contudo, foi complicado achar um restaurante aberto. Na cidade de Céu Azul foi uma longa procura, mas finalmente encontramos um buffet com churrasco no cardápio. Claro que comemos bastante, o almoço seria a principal refeição do dia no estilo de viagem que nos propusemos a realizar. De barriga cheia andamos poucos metros e paramos na sombra de algumas árvores na beira da estrada. Estava tudo saindo conforme o planejado.
O objetivo do dia era chegar à Cascavel, cerca de 150 km de Foz. Ficaríamos na casa de um casal, amigos do Alexandre. Assim, o descanso do almoço deve ter durado algo em torno de uma hora. O trecho foi marcado pelas inúmeras subidas, nada que desanimasse. O que começava a preocupar eram as nuvens de chuva se formando. Era possível visualizar que no horizonte não muito distante já estava caindo água. Na verdade, não queríamos perder tempo colocando a capa do alforje (no meu caso) e protegendo o restante das coisas mais importantes, como os eletrônicos. Talvez um pouco depois de Santa Tereza começaram os primeiros pingos e foi inevitável parar. Mas acabamos nos livrando da pancada maior, quando chegamos em Cascavel apenas o asfalto estava molhado.
O primeiro objetivo estava feito e sem nenhum problema; 142 km pedalados. Em Cascavel, Alexandre ligou para o Daniel que foi nos buscar próximo à rodoviária. A hospitalidade do casal Daniel e Nádia foi excelente com direito a saborosas pizzas no jantar. Muito obrigado por tudo.
Nádia e Daniel.
Começando o segundo dia. Detalhe para a diferença de carga e consequentemente, peso.
Segundo dia de viagem começa com uma temperatura atípica para a estação. Chego a utilizar minha segunda pele. Com o tempo nublado e muita neblina parecia que o sol iria custar a aparecer. Mas o velho ditado de que neblina é sinônimo de tempo bom parece ser verdade na maioria das vezes e não foi diferente conosco, contudo, levou algumas horas pra isso acontecer.
O sobe e desce constante continuam a fazer parte da viagem. Essa oscilação no relevo já era de nosso conhecimento, tanto que a quilometragem diária foi baseada na altimetria. Analisar bem o roteiro é um dos ‘segredos’ para não se perder no planejamento.
A expressão no rosto é o resultado das várias subidas da BR 277.
Pinheiro do Paraná pelo caminho.
Equilibrar a bike carregada sem as mãos e na subida, não é fácil.
Placa desejada. Descer as vezes é bom.
Paisagem.
Passar por lugares já pedalados anteriormente nos remete a outra viagem, dessa vez à memória. Impossível não lembrar da Travessia do Paraná. Em um dos livros do Amyr Klink ele menciona que a vida é curta demais para repetir caminhos. No entanto, a sensação que eu tinha era de estar vivo, muito vivo para ter oportunidade de passar pelo mesmo lugar outra vez, mas com olhar diferente, agora minha observação e absorção das coisas era muito maior. E isso foi um aprendizado que o cicloturismo me trouxe a cada viagem. Eu já não era o mesmo.
Por vezes nas conversas com o Alexandre mencionava o que acontecera durante a Travessia do Paraná, como algumas coisas estavam parecidas e como outras mudaram com o tempo. Já as paisagens continuavam a impressionar.
Em Ibema resolvemos fazer uma parada para o almoço, comida caseira, simples, gostosa e barata. Mas o que chamou atenção mesmo foi o episódio que aconteceu depois, quando descansávamos próximos ao restaurante. Quase na saída para a estrada nos aparece um guri com uma bicicleta. Ele estava curioso, fez as perguntas básicas, de onde éramos e pra onde iriamos e depois começou a contar suas histórias que a gente chorava de rir. Jackson era o seu nome. Entre os causos seriamente narrados, um foi o melhor; quando em uma ocasião foi com a família para o Paraguai fazer compras e o seu pai acabou discutindo com outro homem por um motivo banal e no meio da conversa, Jackson como numa cena de herói, alerta seu pai sobre a intenção do “bandido” da história e diz; paaaai abaixa que a bala vem. Mas contou com um jeito tão natural que parecia verdade (ou era mesmo?). Sei que continuamos o pedal lembrando a célebre frase.
Descanso merecido após o almoço.
Jackson, contador de causos.
Após Guaraniaçu as subidas tornam-se praticamente intermináveis. São subidas em sequencia, uma coisa incrível. Quando você acha que terminou, desce 50 metros e já sobe mais 2 quilômetros. E o sol rachando nossas cabeças, tanto que o companheiro Jamanta resolveu improvisar para sentir menos o desgaste físico. Com uma toalha molhada no banheiro do SAU resolve encobrir a cabeça. Acabou que parecia um estrangeiro pedalando e sofrendo com a temperatura do verão brasileiro. Tirei muito sarro e continuamos pelas subidas.
Gringo Jamanta improvisando contra a temperatura alta.
No topo de uma das sequencias das subidas.
As belezas do caminho.
Por volta das 4 horas da tarde chegamos próximo ao ponto mais alto do dia na região de Nova Laranjeiras. Paisagens maravilhosas por todos os lados. Paramos para tirar algumas fotos, incluindo na ferrovia da Ferroeste que margeia a rodovia do Oeste até o Litoral do estado. Na sequencia voltamos pra BR e subimos mais um pouco antes de acontecer um fato inusitado.
Pedalando nas alturas.
Um registro para lembrar a Travessia do Paraná.
Nos trilhos da Ferroeste.
Victoria e eu.
La Victoria.
As magrelas nem tão secas assim.
Flora.
No alto da montanhas.
Paisagem.
Paisagem nas proximidades de Nova Laranjeiras.
Alexandre e eu vínhamos pedalando juntos desde São Miguel do Iguaçu, dificilmente um escapava do campo de visão do outro. Assim, antes da descida da serra de Nova Laranjeiras, território indígena, diga-se de passagem, vejo Alexandre pouco metros na frente quando percebo uma movimentação estranha e um diálogo entre ele e uma pessoa do outro lado da rodovia. De repente visualizo um homem atravessando a pista indo em direção ao camarada. Foi um breve período de tensão. O que desejava com toda aquela euforia?
Na verdade o homem eufórico era Anderson, um sujeito simples com uma alma rica. Estava viajando com sua modesta bicicleta, por isso, ao avistar Alexandre saíra correndo em sua direção. Foi engraçado, pois ele pensou que o Jamanta fosse gringo (também, com aquele visual!) e sua abordagem foi feita em um portunhol capenga, gritando dizia; Ei, ei, ei, eu também soy pedarilho.
Ao contar que estava viajando de bicicleta nos interessamos em saber sua história e acabamos por atravessar a rodovia para ver seu meio de transporte e conversar. Ficamos pouco tempo, é verdade, mas aprendemos muito. Anderson não nos disse de onde estava vindo, no entanto, pretendia seguir viagem até o Chile. Para cobrir as despesas ele, enquanto pintor, realizava alguns trabalhos à beira da estrada, era o que estava fazendo naquele momento. Sua companhia era uma cachorra de nome Toyota. Acredite, viajava com ela sobre o baú de moto que transportava na garupa da bicicleta. Fez questão de nos mostrar como ela se comportava em tal situação. Algo simplesmente incrível.
Anderson e Toyota, amizade para todos os momentos.
Toyota comportada, viaja acompanhando seu dono.
Detalhe para a simplicidade do "alforje".
Liberdade para seguir seus sonhos.
O que mais chamou atenção na conversa com ele foi sua perspectiva a respeito das relações humanas, sobretudo, a esse sistema que tanto nos sufoca e aprisiona com padrões repletos de superficialidades e que nos são apresentados com enorme naturalidade e sem maiores questionamentos. Anderson, um sujeito simples, pensante e corajoso para colocar seus ideais em prática, principalmente sua busca por liberdade.
Tempos depois, soube notícias através do amigo ciclista Alexandre, de Santos, que em sua viagem para Foz do Iguaçu de bicicleta acabou por encontrar Anderson no caminho, inclusive pedalaram juntos. Anderson havia partido de Paranaguá e que a dura realidade impedira de seguir para o Chile uma vez que a situação financeira não ajudara. Mas fico feliz em saber que ainda existem pessoas que insistem em viver conforme sua própria maneira. Assim lembrarei do nosso amigo pedarilho.
Na longa descida da serra para Nova Laranjeiras vamos nos deparando com placas alertando sobre o aldeamento indígena, mas demorou para avistarmos a presença dos índios, talvez em razão da hora, já eram quase 7 da noite. Os únicos vestígios eram as barracas montadas e vazias à beira da rodovia. No entanto, no final da descida encontramos algumas crianças e mulheres vendendo seus artesanatos. Fotografei de longe e quando fui fazer um registro mais próximo não demorou para que uma criança já viesse em minha direção. Perguntei o preço de uma peça e logo que me responde acontece a mesma coisa que ocorreu na Travessia do Paraná, ela me questiona se havia dinheiro ou bolacha para lhe dar. Claramente foi induzida por uma mulher mais velha que sentava próxima à barraca. Não comprei nada por falta de grana e também não fiz nenhuma doação pelo mesmo motivo.
Maravilha de placa. Descida de serra em Nova Laranjeiras.
A natureza nos acompanha de alguma forma.
Aldeamento Indígena.
Artesanatos na beira da estrada.
Chegamos à Nova Laranjeiras com o tempo ainda claro, embora já passasse das dezenove horas, nada como o horário de verão para pedalar. 137 km era a distâcia percorrida no dia. Fomos à rodoviária que fica logo na entrada da cidade onde havia a informação que funcionava um hotel. Não custava ver quanto custava a diária. Não era barata. Mas era possível utilizar apenas o banheiro coletivo para tomar banho. Foi o que fizemos antes de procurar um local para acampar nas proximidades.
Primeiro acampamento da viagem. Conseguimos autorização para acampar na frente de uma casa que, por sua vez, ficava bem próxima à rodovia, mas que acabava meio escondida entre matos e árvores. Na verdade, quem conseguiu a licença para acampar foi o Alexandre que ficou incumbido de tal tarefa. Mostrou-se muito eficiente em sua primeira tentativa e acabamos economizando com hospedagem e a janta, já que preparamos a própria comida. A noite não foi das mais tranquilas por causa do movimento intenso na estrada, mas foi possível dormir.
Acampamento em Nova Laranjeiras.
O terceiro dia começa com um tempo nublado e sem muita cara de melhorar. A pretensão era chegar em Guarapuava onde o amigo cicloturista Jean estaria nos esperando para passarmos a noite na sua casa. Mas antes de chegarmos ao destino, tive, ainda pela manhã, o único pneu furado da viagem. Meu Pirelli BM-90 que poucas vezes me deixou na mão estava bem gasto é verdade, mas sem dinheiro para trocá-lo resolvi arriscar a viagem com ele mesmo. Contudo, essa condição não foi a causa do furo, pois o mesmo foi causado por um prego que atravessou todo o pneu parando apenas no aro. O jeito foi trocar a câmara de ar e avançar.
Ainda bem que isso aconteceu apenas uma vez durante a viagem.
Prego indesejável.
Após trocar o pneu não demorou em começar a chover. As subidas também não davam trégua. Essa combinação que não é das melhores foi amenizada apenas com nossa parada em Cantagalo para almoçar. Tive que trocar de roupa para poder entrar no restaurante devido a sujeira proveniente do spray formado pela roda em movimento. O almoço farto e saboroso nos deu ânimo para encarar o trecho restante. Sabíamos que não seria fácil, afinal estávamos em direção a maior altitude da viagem; 1098 metros em Guarapuava.
A aproximadamente vinte quilômetros de Guarapuava faço uma ligação para o Jean avisando nossa chegada. Mas, ninguém atende. Faço outras tentativas sem sucesso. Com isso já vamos pensando em um lugar para dormir. Eu estava disposto a acampar em um posto de combustível, no entanto, o Alexandre se mostrou favorável a ficar em um hotel. Ciente que eu não tinha condições de pagar, me disse que era por sua conta. Desse modo, paramos no Hotel Soledade nas margens da BR 277 em Guarapuava, se não me falhe a memória a diária era de 25 reais. Nosso terceiro dia terminou com 132 km.
O recepcionista do hotel foi muito prestativo e deixou que guardássemos as bicicletas próximo a cozinha. Neste momento meu telefone toca, era o Jean retornando a ligação. Ele estava pedalando e por isso não atendeu. Digo onde estávamos acomodados e agradeço por disponibilizar um local para ficarmos. Mas para minha surpresa, não demorou muito e encontro o Jean na recepção do hotel. Conversamos muito sobre várias coisas, sobretudo, cicloturismo. Durante a conversa ele nos faz um convite para jantar, lógico que não foi recusado. Vou tomar um banho antes de sair quando o recepcionista me avisa que a nossa diária havia sido paga pelo Jean. Me restou agradecê-lo por tal atitude que dificilmente será esquecida. Nosso jantar também foi memorável, comida de primeira em um caro restaurante. De uma maneira ou de outra, Jean acabou nos proporcionando uma excelente hospitalidade. Obrigado camarada.
Camarada Jean.
Saímos por volta das oito horas da manhã para começar o quarto dia de viagem. O horário tardio se fez em razão do café da manha completo no hotel. Lá fora, muita neblina, típica da região montanhosa.
Neblina na região de Guarapuava nas primeiras horas do dia.
O dia anterior havia sido desgastante por causa das inúmeras subidas. A canseira era aparente. Mas deveríamos continuar nossa jornada. Busquei animar o Alexandre dizendo que em poucos quilômetros teríamos a descida da Serra da Esperança. Antes disso fomos privilegiados com a cachoeira da Milena que fica ao lado da rodovia nas proximidades de Guará. Sua beleza sintetiza o ambiente bucólico da região. Difícil não lembrar a viagem de 2007.
Alexandre com a canseira aparente.
Descida fantástica. Cachoeira da Milena ao fundo.
Cachoeira da Milena.
Novamente diante da maravilhosa cachoeira.
Viva a natureza!
Na descida da Serra da Esperança, com extensão de 7 km, muita adrenalina. Uma pausa para registrar o Morro do Chapéu, lindo por natureza. Continuamos a descer em alta velocidade. Com a bicicleta carregada é mais fácil de manter sua estabilidade, assim, foi fácil chegar aos 70 km/h com segurança. O acostamento tem as famosas lombadas, pequenas e chatas. Elas nos impedem de trafegar por esse espaço, assim, seguimos pela faixa dos veículos, em alguns momentos chegamos a ultrapassar um e outro carro.
Começando a descer a Serra da Esperança.
Morro do Chapéu.
O sol finalmente aparece depois da serra, isso por volta das onze horas. No final da descida chegamos a Relógio, passamos o pedágio e paramos no SAU pra pegar um chazinho quente e comer bolacha. Era uma estratégia, considerando que o próximo restaurante não estava perto. Algo que foi confirmado. Entre Relógio e Irati existem algumas lanchonetes especializadas em pastéis. No entanto, é difícil ver um restaurante. Encontramos um lugar modesto quando já passava do meio dia. O prato feito estava bem caprichado. Após o almoço tive a sorte de fotografar alguns canários nas árvores que circundam o local. Decidimos avançar um pouco e parar em alguma sombra mais confortável.
Canário.
Era preciso sair bem descansado depois do almoço pois teríamos um bom trecho pela frente. Nosso objetivo era chegar em Palmeira. Segundo a planilha que havia feito era o dia com maior quilometragem, chegando a 165 km. E não foi diferente. O dia de pedal terminou apenas de noite, pela primeira vez pedalávamos na escuridão. O cansaço era inevitável, mas precisávamos chegar ao local traçado no planejamento. Fisicamente quem mais sofreu foi o Alexandre com a longa distância no dia que terminou com 175 km em 10 horas de pedal.
Em Palmeira resolvemos parar num posto de combustível e pedir autorização para acampar. Sem um lugar muito apropriado para levantar acampamento resolvemos pedir na borracharia que ficava paralela ao posto. O rapaz que nos atendeu não permitiu nossa estadia. Mas nem tudo estava perdido, nos recomendou procurar o ginásio de uma escola que por sua vez era próxima da igreja que ficava a 150 metros. Nos dirigimos ao local indicado e para nossa surpresa tinha muita gente no salão de festas da igreja. Era um jantar comemorativo. Fui procurar alguém para pedir alguma sugestão de onde poderíamos ficar. Vou parar na cozinha do salão de festas. Apresento-me para as mulheres do local e falo rapidamente da viagem e o que procuro naquela hora da noite. Sensibilizadas elas me dizem que não existe problema em ficar no ginásio. Para, além disso, perguntam se não queremos jantar. Imagine, aceitei na mesma hora. Apenas deixamos as coisas na quadra de esportes e nos dirigimos à cozinha onde pudemos nos servir à vontade com direito a refrigerante e comida boa.
Durante a conversa com as mulheres descobrimos que na verdade estávamos em um distrito de Palmeira, assim, deveríamos sair cedo para não atrasar nossa chegada em Curitiba, destino do dia seguinte. Mas ainda durante a janta falamos de vários assuntos, as mesmas perguntas inevitáveis vem à tona, de onde somos, pra onde vamos e assim por diante. Mas respondemos todas numa boa. Àquela altura não poderíamos reclamar de nada, nada. Nem da falta de banho. Sim, deixamos para o dia seguinte, depois de jantarmos seguimos para a quadra onde esticamos os sacos de dormir e boa noite.
Quinto dia. Acordamos cedo para render bastante no pedal. Alexandre começou a sentir incômodo na nádega em razão de várias horas sentado no selim. O pedal do dia anterior tinha sido realmente puxado. Seria difícil chegar em Curitiba ao meio dia conforme combinamos com o amigo João Paulo que iria nos recepcionar e hospedar em sua casa. O caminho até a capital paranaense é bonito, antes de São Luís do Purunã admiramos paisagens que compensavam qualquer dor.
Mais uma subida entre Palmeira e São Luis do Purunã.
Beleza natural nas proximidades de São Luis do Purunã.
Paisagem.
Paisagem.
Após São Luís descemos a serra até Campo Largo, essa parte da viagem eu havia feito de noite na Travessia do Paraná, por isso de certa forma era novidade pedalar por aquelas bandas. Logo chegamos em Campo Largo onde aproveitamos para almoçar. Liguei de novo para o João a fim de avisá-lo que chegaríamos apenas de tarde.
Na rodovia do Café.
Em direção a Campo Largo.
A primeira parte da Expedição estava quase concluída, era 15h30min quando chegamos à capital paranaense. 101 km no dia. Estávamos felizes por vencer essa etapa. Animação só não era maior por causa das dores do Alexandre que ficavam cada vez piores. Paramos no shopping Barigui para pedir informação de como chegar ao endereço passado pelo João. Enquanto recebíamos as dicas meu telefone toca. Era o amigo de Foz, Serginho. Morando há algum tempo em Curitiba me liga perguntando sobre a viagem. É quando explico onde estamos e na sequencia recebo a noticia de que nos encontraria e levaria até a casa do João. Tudo conspirando a nosso favor. Aguardamos um pouco e logo ele aparece para nos guiar pelas ruas da capital.
Chegando em Curitiba.
Primeira etapa vencida.
Jamanta completando os mais de 600 km no pedal.
Amigo Serginho que foi nosso guia em Curitiba.
Vamos cortando ruas e avenidas, pegando atalhos e não demora pra estarmos na frente da casa do João Paulo. Finalizamos a primeira etapa. Mas eis que surge uma grande dúvida para Alexandre, seguir ou não a viagem. As dores estavam insuportáveis, sua fisionomia não era das melhores. João e eu procuramos incentivá-lo a não desistir faltando tão pouco. Foi quando resolveu fazer contato por telefone com um amigo farmacêutico na intenção de que indicasse alguma pomada para amenizar as dores. Com a orientação recebida, segue para a farmácia mais próxima e compra a pomada. Agora era torcer para surtir algum efeito durante a madrugada.
>> Parte 2