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Trajeto entre Marechal Cândido Rondon e Foz do Iguaçu no Paraná. |
Dezembro de 2006. Eu morava sozinho e cursava História em Marechal Cândido Rondon/PR quando, ao término do ano letivo na universidade, surgiu uma ideia que parecia audaciosa para mim e todos aqueles com quem compartilhei a possibilidade de pedalar até Foz do Iguaçu, cidade paranaense onde a minha família morava. Aproveitei o período de férias e procurei realizar um planejamento básico para que a viagem não ficasse restrita ao campo das ideias. Mesmo atípica, em nenhum momento a jornada me pareceu impossível, mas essa não era a opinião daqueles que começaram a me taxar de louco. Paciência!
Naquele momento eu ainda não tinha conhecimento algum de que estava prestes a praticar uma modalidade do ciclismo que era denominada como cicloturismo e tampouco tinha contato com outras pessoas que viajavam sobre duas rodas. Desse modo, não existia da minha parte nenhuma leitura de relatos realizados por cicloturistas, porém eu sabia que precisava minimamente planejar aquela decisão para alcançar meu objetivo de pedalar até Foz do Iguaçu e visitar a família.
O primeiro passo foi conhecer o roteiro, ou seja, as cidades que estavam no caminho, a distância entre elas e a quilometragem total do percurso.
Para isso, utilizei um mapa do Estado do Paraná que encontrei na internet e conseqüentemente tracei o percurso por onde passaria. Não existiam muitas opções de rotas para quem desejava chegar à Terra das Cataratas, assim pedalaria pelo mesmo percurso realizado pelo ônibus da linha M.C.R x Foz, trajeto que passei inúmeras vezes observando a Costa Oeste e seus balneários através da janela do ônibus. Nas anotações também foram incluídos os distritos visíveis no mapa, afinal, eu deveria saber exatamente por onde seguir.
Essa primeira tarefa não foi difícil, pois alguns mapas disponibilizavam a quilometragem entre cada trecho. A distância era considerável para qualquer ciclista que desejava concluir 175 quilômetros em apenas um dia. Todavia, por alguma razão, não me assustei com esses números.
Pensar no que levar foi o próximo passo. As ferramentas básicas estavam na lista e relacionadas somente a uma possível câmera de ar furada durante o trajeto. Detalhe, eu nunca tinha trocado um pneu antes e nem sabia como fazer, mas também não me preocupei em aprender. Não sei, talvez a falta de experiência ou a confiança de que nada poderia acontecer me fez não prestar muita atenção para esses detalhes.
Uma bomba de ar, câmera reserva e ferramenta básica, foi o que levei em uma mochila que também contava com meia dúzia de banana, algumas bolachas e uma garrafa de dois litros com água congelada. Sim, pensei que essa seria a solução para ausência de água. A mochila estava extremamente pesada, o que resultou em um desgaste ainda maior durante a pedalada.
Mas esse não foi o meu principal equívoco. O horário de partida se revelou muito mais cruel, afinal, eu comecei a pedalar depois do almoço.
Almocei e deixei um bilhete em cima da mesa com o percurso completo, pois eu não tinha avisado ninguém sobre a viagem, apenas comentei sobre ideia. Dessa maneira, achei que seria interessante deixar o aviso para informar o meu provável paradeiro em caso de algum acontecimento inesperado. E assim, após às 13 horas, fechei a porta do apartamento, encontrei a minha vizinha e mencionei que estava indo para Foz do Iguaçu. Claro, ela ficou incrédula com a notícia. Segui viagem.
Assim, a minha primeira viagem seguiu sob um forte calor, característico do quente verão do velho oeste paranaense, uma das regiões com as temperaturas mais elevadas do estado. Aprendia naquele momento que o melhor horário para começar uma viagem de bicicleta seguramente não era no período vespertino, ainda mais com aquelas condições. A água não resistiu aos cinqüenta primeiros quilômetros. A constatação poderia significar um grande problema, mas revelou um lado positivo, pois começava meu contato maior com as pessoas encontradas pelo caminho, afinal, acabei obrigado a deixar a timidez de lado para pedir água, informações e tudo mais. O melhor desse contato foi sentir a incrível receptividade das pessoas com quem viajava de bicicleta. Não sei dizer exatamente o que elas pensavam, ao mesmo tempo em que algumas chamavam de louco também ficavam admiradas pela coragem e o transporte pouco habitual para um deslocamento como aquele.
A jornada continuava, porém ficava cada vez mais difícil chegar em casa no mesmo dia, aquele sábado quente de dezembro.
Com paradas freqüentes para hidratar, comer alguma coisa e, sobretudo descansar, o tempo foi passando de forma rápida em contraposição aos quilômetros que aparentemente ficavam mais longos a cada giro do pedal. A altimetria que parecia uma informação banal, provou ser muito relevante para uma aventura daquele tipo, mas na época eu não tinha esse conhecimento. Marechal Cândido Rondon estava localizada acima dos 400 metros de altitude contra os 164 metros de Foz do Iguaçu, no entanto, isso não significava um trajeto marcado pelas descidas, pois as subidas foram constantes. Se você pretende se aventurar pelas estradas comece a olhar a subida por um outro ângulo, se enxerga-la apenas como um obstáculo intransponível, certamente seu aspecto psicológico vai afetar o desenvolvimento físico do seu corpo. Mas vai dizer isso pra alguém em sua primeira viagem. Na prática, as coisas são mais sofridas.
A noite chegou e eu ainda estava na estrada, há quase 30 quilômetros de São Miguel do Iguaçu, cidade onde o caminho para Foz seria pela BR 277, rodovia pedagiada e com condições infinitamente melhores que a rodovia estadual por onde eu pedalava na escuridão. Para variar, o trecho entre Missal e São Miguel do Iguaçu consagrou-se como o mais difícil da viagem naquele momento. O sobe e desce constante era marcado por subidas íngremes intermináveis. Agora, acrescente a essa situação os quilômetros que foram pedalados debaixo do sol escaldante; a canseira aparente; e o avanço sem enxergar nada. Pois é, não sei o que estava pensando quando resolvi sair depois do almoço. Não levei lanterna, farol ou coisas do gênero, a única luz que eu enxergava na pista era a dos automóveis que me orientava através do seu reflexo na faixa da estrada. O risco foi enorme, sobretudo porque era um caminho que interligava vários balneários. Hoje tenho consciência do perigo que foi pedalar naquele trecho precário de acostamento quase inexistente. Se era difícil enxergar a pista, imagina as placas informativas, principalmente em relação as distâncias.
Outro aprendizado na minha primeira viagem: não confie cegamente nas informações de pessoas encontradas na estrada ou nas entradas das cidades, principalmente quando o assunto está relacionado à quilometragem. Muita gente não tem noção de distância e talvez de modo inconsciente acaba por informar um número equivocado. Assim, facilmente dez quilômetros podem ser na verdade trinta.
Passava das 22 horas quando, finalmente, cheguei na cidade de São Miguel do Iguaçu e logo na entrada avistei uma panificadora onde parei para comprar alguma coisa pra comer. Não sei qual era maior, a fome ou a canseira. A dona do estabelecimento me informou que Foz do Iguaçu estava a praticamente 40 km e me recomendou não seguir viagem pela rodovia naquela hora da noite e indicou-me um hotel.
Aqui, aproveito para mencionar duas coisas. Primeiro, embora eu tenha utilizado os mapas da região, não fiz nenhuma planilha no computador, apenas rabiscos em um papel com a distância aproximada de cada cidade. Segundo, não levei mais do que dez reais, afinal, não esperava gastar muito.
Enfim, resolvi seguir o conselho da senhora e fui procurar o hotel indicado no centro da cidade.
Claro, aprende-se logo cedo nas viagens a escolher o mais barato. Dez reais o pernoite, com direito a café da manha, servido apenas após as 8:00. Não tomei banho. Estava muito tarde e embora estivesse muito sujo e suado, a canseira era maior. Liguei o ventilador e fui dormir no pequeno quarto onde mal cabia uma cama de solteiro. Mas era o suficiente.
No dia seguinte resolvi sair cedo. Ainda estava com fome e o café gratuito era tentador, mas 8:00 horas da manhã era muito tarde para que pretendia chegar o quanto antes em casa.
Quase 7 horas da manhã já estava na estrada novamente. As pernas estavam cansadas, assim como o corpo todo, mas ainda conseguia pedalar. Faltavam apenas 45 km e o acostamento era muito bom. Mas parece que o ritmo não era o mesmo. E o psicológico ainda não acostumado com as subidas não ajudava o corpo a compreender aquilo que era o maior dos obstáculos. Avistar uma subida era motivo para desanimar e pra ser sincero, avistava-se dezenas delas. A 277 é repleta de sobe e desce. Mas com muito esforço a distância foi ficando menor e quase ao meio dia estava em Foz. Agora faltavam poucos quilômetros até chegar em casa.
Surpresa. Essa é a palavra de como todos me receberam em casa, estavam atônitos com a minha visita, ninguém me aguardava. Não comentei com ninguém que estava viajando, muito menos de bicicleta. Conhecendo o jeito protetor do meu pai, sabia que não iria gostar nem um pouco sobre a aventura, e não duvido que não medisse esforços para que eu não a realizasse. Não esqueço que me perguntaram se eu tinha vindo de caminhão com a bicicleta na carroceria.
Era realmente inacreditável, sentado na área de casa, comecei a contar sobre a viagem e para a minha surpresa não fui repreendido, mas meu pai disse que se soubesse que eu estava em São Miguel teria ido me buscar. Ainda bem que ninguém sabia, se não teria que ter avisado sobre pernoitar na cidade.
A sensação é de vitória, conquista, superação, e sobretudo, que estamos vivos, embora naquele exato momento, quase morto de canseira. Fiquei uns três dias sem andar direito, estava tudo travado. Não era pra menos, sem fazer alongamento, ter pedalado no máximo três vezes a distância de trinta quilômetros como treino e depois pedalar 175 km em menos de 24 horas. Mas a experiência existe para aperfeiçoarmos a cada dia. De algum modo, sentia que outros horizontes me aguardavam. E essa primeira aventura foi a porta de entrada para um estilo de vida que levo comigo até os dias de hoje.
As pessoas, sim, elas vão continuar te chamando de louco, mas também vão lhe admirar, você acaba inspirando muita gente, seja pela coragem, determinação ou pelo simples fato de não ser comum ver um ciclista viajando. Contar a história da viagem, as dificuldades, belezas naturais do trajeto, os perigos da estrada, a hospitalidade do povo e todo o resto, talvez sejam uma parte da aventura que não se acaba quando chega ao destino.