A saída de São José do Norte foi realizada em balsa, sendo necessário atravessar a histórica e famosa Lagoa dos Patos, a maior laguna do Brasil e a segunda da América Latina, em direção à Rio Grande. Enquanto acadêmico de História, meu conhecimento sobre o local estava relacionado à Revolução Farroupilha, quando a região era de extrema importância estrátegica, principalmente por sua ligação ao mar, tendo assim o porto de Rio Grande uma relevância maior, uma vez que por ele desembarcavam os reforços da Marinha Imperial Brasileira na época do conflito.
"[...] levar os barcos pela Lagoa dos Patos até o Rio Capivari, e dali, por terra, sobre rodados especialmente construídos para isso, até a barra do Tramandaí, onde os barcos tomariam o mar. Assim foi feito, mas não sem dificuldades.
Os Farrapos despistando a armada imperial conseguem enveredar pelo estreito do rio Capivari e passam os barcos a terra, em 5 de julho de 1839. Puxando sobre rodados, os dois lanchões artilhados, com cem juntas de bois, atravessam ásperos caminhos, pelos campos úmidos - em alguns trechos completamente submersos, pois era inverno, tempo feio com chuvas e ventos, tornando o chão um grande lodaçal. Cada barco tinha dois eixos e, naturalmente, quatro rodas imensas, revestidas de couro cru. Piquetes corriam os campos entulhando atoleiros, enquanto outros, cuidavam da boiada.
Levaram seis dias até a Lagoa Tomás José, vencendo 90 km e chegando a 11 de julho. No dia 13, seguem da Lagoa Tomás José à Barra do Rio Tramandaí, sob o Oceano Atlântico, e, no dia 15, lançam-se ao mar com sua tripulação mista de 70 homens.
[...] Por fim, a 14 de julho de 1839 os lanchões rumavam à Laguna para atacar a província vizinha. Na costa de Santa Catarina, próximo ao rio Araranguá, uma tempestade põem a pique o Farroupilha, salvando-se milagrosamente uns poucos farrapos, entre eles o próprio Garibaldi."Desculpe o longo trecho citado, mas espero a compreensão dos leitores. A história jamais pode ser negligênciada.
Marco já havia realizado a travessia neste mesmo local em sua viagem anterior ao Chuy. Mas para mim, tudo era novidade. De alguma maneira, sentia uma sensação diferente ao estar em um lugar onde acontecera fatos históricos que marcaram uma época que hoje é muito lembrada, principalmente no Rio Grande do Sul, onde a valorização da história e costumes são ainda mais presentes.
A travessia levou cerca de 30 minutos até chegarmos no atracadouro de Rio Grande. Desamarramos as bicicletas da proa e novamente pisamos em terra firme. Sendo uma cidade relativamente grande comparada àquelas que haviamos passado nos últimos dias, tivemos que pedalar alguns quilômetros para encontrar a saída do munícipio, no caminho registramos algumas peculiaridades de Rio Grande.
Antes do trevo entre a 382 e a 471, uma placa informa que o Chuí estava a 225 km, pouco pra quem está acostumado a pedalar longas distâncias. Neste trecho nos deparamos com obras na rodovia e um grande número de caminhões, pra nossa sorte eles seguem pela BR 382, sentido Pelotas, Porto Alegre.
Até existem pontos de ônibus cobertos na estrada, contudo, sem proteção ao vento. Demoramos muito tempo pra encontrar um lugar onde fosse possível manter o fogareiro aceso. Sem opção, decidimos parar em um terreno ao lado da rodovia onde havia algumas tubulações de concreto, estava longe de ser o lugar ideal, mas após verificar o ambiente, resolvemos parar e preparar o almoço. Mais uma vez, macarrão instantâneo, mesmo sendo prático e rápido de fazer, o vento tratou em retardar o processo. Alguns minutos a mais do que de costume e finalmente fica pronto e logo é devorado.
Assim que entramos no trecho da rodovia que passa pela Estação Ecológica do Taim placas alertam para a presença de animais na pista, entre eles, a Capivara, que merece uma placa particular de aviso. Não demoraria para saber o porque da insistência das informações relacionadas aos cuidados com os animais.
Avançando pela reserva vamos encontrando mais e mais capivaras por todos os lados, infelizmente até mesmo no acostamento, em todo o perímetro do local foram contabilizadas 17 capivaras atropeladas. Na extensa área às margens da rodovia existem lagos e banhados que servem também para o deslocamento desse tipo de animal, embora, avistamos a maioria deles nos campos abertos, se encontravam em bandos e muito próximos um ao outro buscando se aquecer de alguma forma do rigoroso inverno.
E "[...] Diante dessa variedade ambiental, podem ser encontradas várias espécies de animais, tais como o João-de-barro, tartarugas, tuco-tuco, capivaras, ratão-do-banhado, jacaré-de-papo-amarelo e abundante ave-fauna. A flora, igualmente diversa, apresenta: figueiras, corticeiras, quaresmeiras, orquídeas, bromélias, cactos, juncos e aguapés."
A quantidade de capivaras presentes no local é enorme, fizemos várias paradas para fotografa-las. Algumas ao lado do acostamento se assustavam com a nossa passagem. Para minha surpresa, elas emitem um som muito parecido com o latido do cachorro. Percebemos que fazem isso na tentativa de nos afastar e demonstrar que o território já tem dono. Mesmo assim Marco tentou chegar o mais próximo possível para ter melhores imagens. Na primeira passagem do Marco pelo local no começo do ano estava de noite e não teve a mesma oportunidade de ver essa variedade de espécies.
Quando a escuridão era total o cenário ficou assustador, parecndo filme de terror. Talvez esteja exagerando um pouco, mas a situação era a seguinte; noite, muita chuva e frio em um lugar completamente deserto, não se avistava nenhum sinal de habitação por perto, afinal estávamos em uma Reserva Ecológica. A sorte é que a vontade de chegar à algum lugar era maior do que a capacidade de ficar pensando ou melhor associando àquilo a um roteiro de filme. Apenas comentei com o Marco que não teria audácia de passar sozinho a noite neste trecho. Não era questão de ser medroso, mas é preciso ter cautela em tomar determinadas decisões. Apenas no campo das suposições, imagine se ocorre algum imprevisto e não tem quem te ajude diante de tais condições. Sinistro!
O posto de combustível mencionado pelo dono do mercadinho lá no Taim custava a aparecer, o pedal parecia eterno. A chuva sem parar era a única companhia, nem mesmo os sons dos animais que o Marco veio me falando a viagem inteira que eu escutaria na Reserva foram ouvidos, o caminho todo em silêncio e alguns poucos carros na estrada. Mas o farol da bicicleta de repente reflete em alguma coisa metros à frente. Era um caminhão que saiu da pista e acabou caindo nas margens do acostamento, região marcada por banhados, um carro, possivelmente fazendo a escolta da carga estava ao lado. Aparentemente sem necessitar de ajuda, seguimos.
Finalmente alguns quilômetros depois, uma torre iluminada parece sinal de vida. Mas foi alarme falso. Sem desanimar, continuamos a jornada na busca de abrigo, um local para montar acampamento, quando finalmente começam a surgir algumas casas. Com aquelas condições climáticas restou analisar se alguma residência poderia nos permitir a pernoite. Nenhuma era convidativa até que Marco resolveu perguntar em uma delas a respeito do posto de combustível que ainda não aparecera. Somos informados que está a menos de dez quilometros.
A informação recebida sobre o posto não estava errada e finalmente avista-se a bandeira da Ipiranga. Chegamos e os funcionários estavam dentro da loja, fomos verificar um possível local coberto para montar as barracas, infelizmente as opções em um primeiro momento não eram boas. Resolvemos perguntar aos funcionários se existia algum lugar, sem antes explicar rapidamente sobre a viagem. Somos orientados e autorizados a ficar em um restaurante abandonado bem ao lado.
O restaurante mais parecia um espólio de guerra. A porta principal dava acesso ao interior que também lembrava o Titanic submerso após dezenas de anos. Como estava chovendo e havia muitas goteiras, procuramos um lugar mais propício para erguer acampamento. As janelas não tinham vidros e o vento também se fazia presente tornando o ambiente mais frio. Mas rapidamente as barracas foram montadas.
Os funcionários bem receptivos nos informaram que o local era tranquilo e o máximo que poderia acontecer seria a presença de um policial, pastor alemão, mas que ele não apresentava perigo. E realmente não foi uma ameça, apareceu logo depois e apenas cheirou as coisas. Noite foi sossegada, com muita chuva é claro.
No posto nos deparamos com um caminhoneiro e comentamos sobre o acidente visto poucos quilômetros atrás. Esse motorista, muito gente boa, era da mesma empresa da carreta que estava há alguns dias naquele estado aguardando o guincho para a remoção.
De manhã a chuva continua. Começamos a desmontar acampamento quando aparece o dono do posto e puxa conversa. Entre os assuntos, menciona o bom faturamento do dia anterior, isso explica em partes o movimento na rodovia, que segundo o Marco estava bem maior do que a outra vez em que esteve na região. Certamente julho, mês de férias, essa parte do país receba mais visitantes.
Logo depois aparece o motorista que já conhecíamos e também o da carreta acidentada, que saiu ileso. Junto estava o corretor de seguros para registrar o sinistro. Foram alguns minutos de histórias contadas e muitas risadas. Nos despedimos do pessoal e seguimos para o último dia de pedal no Brasil.
Foi uma manhã extremamente fria e com chuva forte em alguns trechos. A paisagem não mudara muito em relação ao dia anterior. Após 39 km pedalados surge o posto da Megapetro (Km 569) e ao lado um restaurante. Sem pensar muito paramos pra almoçar mais cedo, na verdade era meio dia, mas nos últimos dias nosso almoço era feito bem mais tarde. O cardápio não tinha muita variedade e a opção mais barata era uma minuta com arroz, bife, batata frita e salada. A comida estava boa mas pelo fato de não ser farta e o valor alto, deixou a desejar.
Após o almoço o frio era quase insuportável, ambos com touca ninja para evitar a perda de calor. Chovia e ventava forte. Marco pede um tempo e faz uma ligação pra casa no telefone público do posto. Não aguento ficar parado e sigo pra estrada, vou em um ritmo mais tranquilo e logo o Marco me alcança e vamos avançando meio a um tempo que oscila entre chuva e muita chuva. Apenas no final da tarde o clima melhora, fica apenas nublado. No caminho, pastagens, criações de gado e outras aves diferentes. Ainda encontramos mais animais mortos no acostamento, entre eles um boi que pelos destroços ao redor foi atingido por um um veículo. Isso nos fez lembrar a versão do motorista da carreta que, segundo ele, uma vaca teria atravessado na frente do caminhão.
Mais uma noite na estrada quando finalmente encontramos uma cidade, Santa Vitória do Palmar, antes dela apenas um vilarejo com o nome de Arvoré Só e depois um posto de combustível onde aproveitamos para calibrar os pneus. Este é o terceiro e último posto que encontramos na Rota Extremo Sul, um restaurante ao lado pode ser uma opção de parada pra você que pretende um dia fazer esse roteiro.
Sem chuva, o frio nos acompanha até S. Vitória do Palmar, tentamos registrar o portal da cidade, mas a escuridão não ajudou muito. Também fotografamos a placa indicando que restavam apenas 22 km para o Chuí. E chegar até a cidade fronteiriça não foi fácil, minha vista já não estava muito boa após vários dias pedalando no escuro e recebendo luzes fortes direto no olho e a canseira era aparente. Marco vai seguindo na frente, atrás vou me esforçando para manter o ritmo e finalmente as placas internacionais surgem na estrada.
As informações sobre à aduana brasileira indicava que parte do nosso objetivo estava sendo concluído. Logo depois da alfândega a placa que tanto esperávamos, divisa de países; Brasil / Uruguai. Claro que paramos para tirar várias fotos, mesmo no escuro fizemos questão de fazer esse mais esse registro histórico.
No hotel algumas pessoas vieram conversar conosco e dizer que passaram pela a gente na estrada. Ficaram surpresas ao saber de onde estávamos vindo, nos parabenizaram, não sem antes ouvir um pouco da nossa história sob duas rodas. Esse bate papo aconteceu meio a uma enorme sala para os hóspedes com direito a lareira em plena atividade, sinal de que o frio não estava pra brincadeira.
Chegamos no Chuí dia 25 de julho de 2010 após 1255 km pedalados.
Na manhã seguinte arrumamos nossas coisas e acertamos a conta, 30 reais a diária, coitado do meu bolso, a minha sorte é que vinha economizando uma vez que estava fazendo o próprio almoço. Na saída do hotel, com o tempo bom e muito sol começamos a notar as diferenças que circudam a cidade.
O comércio, principal atividade do município tem suas fachadas escritas nos dois idiomas, português e espanhol. Brasileiros e uruguaios são facilmente encontrados nas ruas em que estabelecimentos estão com produtos no preço da moeda vizinha, ou seja, peso uruguaio, como presenciamos no pequeno mercado onde comprei várias bolachas da Faville, indústria de Marechal Rondon/PR, por apenas R$ 0,50 a unidade, fiz um estoque delas. Enfim, eu que sou morador de Foz do Iguaçu, tríplice fronteira nunca tinha visto nada parecido. É uma mescla de culturas impressionante.
O Uruguay nos esperava com grandes surpresas.
Espetáculo de relato!!! To passando o link para os pedaleiros aqui de Rio Grande.
ResponderExcluirAbraço
Essa parte do perrengue com o fogareiro me fez lembrar do meu post sobre a barreira...
ResponderExcluirEncantada Nelson, tu falas com precisão da nossa localidade o Extremo Sul é bem isso, como relatas , paissagens , plantações ,fauna ,clima , frio de renguiar cusco como falamos aqui. Cara tu passou tão perto e eu não sabia.Se algum dia passares por aqui novamente tens acolida aqui e no Chuy tambem.
ResponderExcluirCamarada um abraço.
Maria do Carmo. Pelotas,RS