sábado, 9 de janeiro de 2010

Argentina: Chaco, Salares e Cordilheira dos Andes.

Expedição do Atlântico ao Pacífico

Parte 3

Com muito esforço chegamos na divisa entre Paraguai e Argentina. Estávamos na aduana Argentina exatamente às dez e meia da noite. Em função da hora, o local se encontrava sem muito movimento, assim, apresentamos nossos documentos, apenas as identidades, que foram cadastradas no sistema, informando o ingresso ao país. Desse modo, ganhamos a emissão do “permiso”, ou seja, a licença para estarmos devidamente legalizados na Argentina. A partir daquela data, teríamos autorização para uma estadia de três meses enquanto turistas. Uma burocracia que funciona na prática e se estende por toda a Argentina, ao contrário do Paraguai, onde também saímos sem a necessidade de apresentar nenhum documento.

Após o dia todo pedalando, a canseira era aparente.


Alfândega

Na aduana Argentina, a nossa sensação era de alivio por estar cada vez mais próximo do nosso destino, Clorinda. Mas não somente, estávamos no segundo dia de viagem e já nos encontrávamos no segundo país da Expedição, no qual, pedalaríamos por vários dias, sendo o local que mais permaneceríamos entre todos os países. Sem nenhum obstáculo no cadastro dos documentos, seguimos adiante pela Ruta 11 em direção a Clorinda. Nos primeiros metros após a aduana, algumas casas à beira da estrada e o que nos chamou atenção, foi uma música alta pela hora da noite, com uma letra um tanto vulgar em ritmo de funk. Caímos na risada e continuamos pedalando.

Durante esse trecho infinito de retas até a alfândega algumas casas aparecem iluminando o escuro percurso. Felizmente encontramos uma venda à beira da estrada. Mas foi difícil saber se o estabelecimento estava aberto ou fechado. Sem mencionar que mais parecia uma prisão. Não havia nenhum cliente, exceto nós três. Apreensão. Pouco tempo depois aparece um rapaz que nos atende e aproveitamos para pedir um refrigerante. O tempo continuava quente e no ritmo em que estávamos pedalando, pode se ter uma idéia da nossa sede. Dois litros foram rapidamente consumidos e seguimos viagem


Local sinistro na beira da estrada.

A estrada continuou em linha reta, não haviam curvas, subidas ou descidas, apenas retas. Mesmo em um ritmo ainda forte, chegamos em Clorinda quase uma hora depois de passarmos pela aduana. Era 11h20m e estávamos na entrada da cidade. Vento muito forte indicava que a chuva estava chegando junto conosco. Mas ventava de tal forma que era difícil avançar de bicicleta. Não deixamos de registrar o momento e tiramos algumas fotos e pedimos informações de um hotel para passarmos a noite. Afinal era muito tarde e estávamos mortos de canseira, no dia a quilometragem atingiu nada menos do que 228 km’s, a maior distância pedalada em toda a Expedição, merecíamos um banho quente e descanso tranqüilo.

No hotel, que não foi difícil de achar, combinamos o preço com o recepcionista, um quarto para nós três. Novamente não saiu caro. Nossas bicicletas foram acomodadas em um cômodo próximo a recepção. O hotel era um local que se limitava a um prédio não muito novo, distribuído em apartamentos por dois andares. O nosso quarto estava no piso superior, nada de luxo, mas isso não incomodou, tinha banho quente e isso já animou bastante. Tomei um banho caprichado e fui logo dormir. Combinados de acordar sempre cedo para o pedal render durante o dia, então quanto mais cedo dormir, mais tempo pra descansar.

Durante a noite o vento que encontramos na entrada da cidade realmente trouxe a chuva, essa em quantidade suficiente para atravessar o telhado do hotel e chegar até nosso quarto. Sim, goteiras marcaram a noite enquanto dormíamos, acordamos surpresos com o barulho no quarto e quando percebemos o que estava acontecendo, a primeira reação foi correr para tirar nossas coisas de onde estava pingando. Claro que não esperamos parar de chover e voltamos a dormir.

Na manhã seguinte não mais chovia, mas continuava nublado, arrumamos a bagagem nas bicicletas e comemos bolachas e pães, esses comprados na noite anterior, já pensando no café da manhã. Passava das sete horas quando saímos do hotel e voltamos para a Ruta 11, antes conseguimos observar melhor a praça Eva Perón, com um belo jardim e estátuas em homenagem à personalidades argentinas. Uma placa na saída da cidade indicava a próxima cidade, Formosa, a 112 km’s. Entre esse trecho, não havia nenhuma cidade ou povoado. Apenas retas, infinitas retas.

Preparando pra mais um dia

Praça em Clorinda.

Ainda não tínhamos conhecimento, mas começava naquele momento uma jornada que duraria quase oitocentos quilômetros pelas estradas argentinas, as retas e a falta total de acostamento. No inicio não reclamamos do relevo plano, as retas tinham nos proporcionado uma velocidade média constante. Mas o que já incomodava era a ausência de um espaço para pedalarmos com mais segurança. Embora o tráfego de veículos fosse pequeno, era complicado quando dois automóveis cruzavam ao mesmo tempo pela a gente, com uma pista simples, sair dela muitas vezes foi a solução para não sermos atropelados.

O tempo foi outra característica marcante do terceiro dia de viagem, avistávamos um céu completamente carregado, principalmente na direção que estávamos pedalando. Era um fenômeno não muito comum e de uma paisagem diferente, que o João Paulo, enquanto meteorologista de formação, soube identificar e explicar o que aconteceria, resumindo, a chuva nos atingiria na estrada.

Sinal de chuva, com certeza.

As infinitas retas começaram e com elas a chuva.

Mais alguns quilômetros adiante não foi a chuva que nos fez parar e sim a Guardenaria Nacional, a polícia na Argentina. Seguindo a recomendação policial, fomos obrigados a retirar todas as coisas das mochilas para a realização de uma vistoria, na verdade, eles próprios fizeram a retirada de todos os itens. Primeiro o João, em seguida o Aramis. Não achando nada de ilegal, o policial estava preste a tirar tudo do meu alforje, quando um outro servidor menciona que não existe necessidade, para minha sorte ele notou o trabalho extra que eu teria em tirar e colocar as coisas em ordem. No meio da abordagem, o João como um turista de primeira viagem ao exterior foi sacar uma fotografia da ação policial, rapidamente foi recriminado, mas a imagem ficou garantida. O problema maior nas abordagens é a questão da propina, muitas vezes não existe nada de ilegal, mas as autoridades percebendo a presença de turistas, que geralmente viajam com dinheiro, inventam leis e artifícios para criar obstáculos para a liberação da passagem. E muitas são as histórias com a Guardenaria Nacional. Infelizmente no mesmo dia, meus amigos tiveram conhecimento dessa prática abusiva.

Vistoria na parada policial

Como não fui sujeito à vistoria e a minha bagagem logo foi liberada, não perdemos mais tempo e seguimos viagem. A paisagem era de planície com uma vegetação que não soube identificar, mas com a presença significativa de uma espécie de coqueiro entre as pastagens. Cenário que nos acompanhou quase o dia todo. Da mesma forma, avistamos em todo esse trecho um pássaro que não era um falcão, mas lembrava muito.

Paisagem

Fauna

Sem acostamento

Conforme a previsão do João, começa a chover. Com as coisas no alforje devidamente protegidas com sacolas plásticas de supermercado, pois o alforje POC não é impermeável, mesmo assim, considero o melhor no mercado brasileiro. Então, minha única preocupação é guardar a câmera fotográfica, protegendo-a da água. Não coloco nenhuma capa de chuva, a roupa de ciclismo não absorve muita água, ou seja, não fica encharcada e sua secagem é rápida. Mas a questão foi encarar o frio que acompanhava a chuva. Mesmo em movimento, o corpo sentia muito a baixa temperatura. Mas continuamos em frente.

Quase ao meio dia e ainda distante de Formosa, finalmente sinal de civilização. O local parecia relacionado com a transmissão de informação via rádio da policia. Não soubemos identificar. Mas estava habitado, ficamos na área e aproveitamos para comer os pães comprados no dia anterior. Da mesma forma que sucedeu no Paraguai, o João estava pedalando sempre na frente, seguido pelo Aramis e por mim. Assim, o João já estava a mais tempo neste local e foi o primeiro a seguir. Aramis e eu, ambos com uma expressão nítida de canseira, esperamos mais um pouco antes de pegar estrada.

Aramis.

Uma parada estratégica para comer e descansar

Chegamos em Formosa aproximadamente uma e meia da tarde, como o João estava na frente, assim que chegou na entrada da cidade procurou um restaurante. No momento em que avistamos o João, recebemos uma espécie de advertência verbal de estávamos pedalando muito devagar e que não poderíamos continuar neste ritmo se quiséssemos seguir o cronograma planejado. Ficamos surpresos com a incompreensão do João. Não estávamos pedalando menos propositalmente. Mas as circunstâncias abaixaram a velocidade média, resultado de uma estrada que tem apenas retas somado às condições climáticas desfavoráveis. Enfim, ouvimos o João e fomos almoçar, sem nenhum ressentimento da observação feita pelo mesmo.

No restaurante Don Hugo, o cardápio não se diferenciava daquele no Paraguai, pelo menos no que diz respeito a variedade. Fomos apresentados ao menu que nos acompanhou por quase todos os dias na Argentina, milanesa com papas fritas, que é nada mais do que a nossa já conhecida milanesa com batata frita. Neste primeiro almoço na Argentina, se não me engano ainda tivemos a presença de ovo frito. Uma característica dos restaurantes da região é servir pães, os deliciosos pães argentinos. A Argentina é um dos maiores produtores de trigo da América Latina, conseqüentemente realizando a exportação de farinha para diversos países, inclusive o Brasil. Farinha de qualidade que utilizada nos pães, resulta em uma massa diferente, muito saborosa. Mortos de fome, mal chegava a cesta com os pães e já devorávamos o prato de entrada. Não preciso nem mencionar que o prato principal não demorou em ter o mesmo destino.

Como já estávamos atrasados, não ficamos muito no restaurante e logo voltamos a pedalar. Passamos pelas demais entradas em direção ao centro de Formosa, ao lado do aeroporto internacional e continuamos pela ruta 11, caminho para Gral. L.V. Mansilla, lugar determinado para a próxima hospedagem.

Ainda no território de Formosa, existia um posto de fiscalização na rodovia. Estávamos pedalando neste momento em grupo e assim nós três fomos parados ao passar pelo local. Uma surpresa no primeiro diálogo da abordagem. Perguntam ao João de qual lugar ele é, até ai nada de anormal. A curiosidade foi o questionamento em inglês. E não é difícil de compreender a atitude do policial, aparentemente o João é facilmente confundido com um sujeito norte americano ou mesmo europeu. Mesmo erroneamente, o pensamento inicial deve ter sido simples, turista estrangeiro é igual dinheiro em abundância.

Camarada João Paulo.

Os professores; História e Matemática.

Posto de fiscalização, local de corrupção.

Pediram nossos documentos, que foram devidamente apresentados e sem nenhum problema cada um foi liberado após a checagem dos mesmos. Eu particularmente não gosto de prolongar minhas passagens pelas aduanas, postos policiais ou de fiscalização, sobretudo, no exterior. Morador de Foz do Iguaçu, tríplice fronteira, já estava habituado com o tratamento nada cordial dos argentinos. Então, guardei com segurança os documentos e me preparei para continuar a viagem, sem antes notar que o Aramis e o João invés de fazer o mesmo, começam a mostrar o roteiro e falando mais sobre a expedição. Pensei, vou seguir na estrada, logo eles me alcançam.

Seguindo em um ritmo tranqüilo pela rodovia, percebo que a distância aumenta e nada da aproximação dos companheiros. Esse fato começa a me incomodar e decido parar fora da estrada e esperar. O máximo que passou pela minha cabeça foi um pneu furado. Mas tempo depois os dois aparecem com um ar de revolta. Estavam inconformados com a atitude dos policiais no posto de fiscalização. Notando que os dois estavam pedalando sem capacete ou caco como é chamado na Argentina, as autoridades resolvem adverti-los com a aplicação de uma taxa financeira em razão de estarem descumprindo a lei do país. Se a lei realmente existe, ela não é considerada, principalmente pela maioria dos motociclistas da região, onde facilmente são encontrados sem o item de segurança. Mas aqueles homens não perderam a chance de faturar em cima dos estrangeiros brasileiros. A conta começou alta, se não me engano em torno de cem pesos argentinos, equivalentes a quase cinqüenta reais para cada um. Foram levados a uma sala para conversarem com um policial de patente superior com quem a negociação aconteceu. Argumentaram que estavam viajando de bicicleta com pouquíssimos recursos e tudo mais para não pagarem a propina ou pelo menos diminuir o valor. Com muita conversa, os dois acabaram pagando um total de cinqüenta pesos. Parece pouco, mas as circunstâncias eram inaceitáveis e abusivas. E toda economia era necessária para concluir a viagem.

Esperando os camaradas que estavam no posto de fiscalização.

Recomendados a comprarem um capacete os dois não pensaram duas vezes e no dia seguinte a aquisição já estava realizada. Imagina-se que um ciclista que viaja de bicicleta procura se prevenir ao máximo sua integridade física, sendo indispensável a utilização do capacete. Assim, eu também penso. Mas o João Paulo nunca foi muito adepto de nenhum item destinado ao ciclista, no que diz respeito ao vestuário, incluindo o capacete. O Aramis começou a expedição carregando o capacete, mas optou por deixa-lo em Foz do Iguaçu para o Fernando leva-lo à Curitiba. Realmente muito azar.

Toda essa história da propina eu ouço enquanto pedalo na companhia deles, que não durou por muito tempo. Talvez eu estivesse sentindo as distâncias altas, o peso da bicicleta e sua bagagem, conseqüentemente meu ritmo era menor e fui ficando para trás. Pedalei praticamente a tarde inteira sozinho pelas infinitas retas da ruta 11. A paisagem não mudara muito, o que tornou cada quilometro mais demorado. Mesmo assim continuei observando a natureza, principalmente o pôr-do-sol, o primeiro na Argentina.

Pôr-do-sol

Final de tarde

Com o tempo já escuro cheguei na entrada da cidade de Gral. L.V. Mansilla e não foi difícil localizar o Aramis e o João montando suas barracas em uma área gramada de um posto de combustível. Já passava das nove horas da noite e começava outra etapa de um viajante, montar acampamento. Desde a saída de Foz, era a primeira vez que estávamos utilizando as barracas, afinal não poderíamos gastar nosso dinheiro com pousadas, hotéis ou camping. Não demorei muito para deixar minha ‘casa’ pronta e logo tirei todo o alforje com a bagagem e coloquei dentro da barraca. Com as três bicicletas amarradas com meu cadeado de moto, o mesmo levado na Travessia do Paraná, resolvo que é hora de tomar banho.

Primeiro acampamento da expedição

Outro momento complicado da viagem, a hora de usar o banheiro, seja para eventuais necessidades fisiológicas ou tomar banho. São lugares utilizados por todo o tipo de gente e geralmente não muito higiênicos. Sem alternativa, a solução é fazer malabarismo e se virar como pode. Na privada não existe segredo, sempre procuro forrar o assento com papel higiênico. De baixo do chuveiro, sempre de chinelo e com bucha, sabonete e toalha particulares. No primeiro momento fiquei feliz em saber na existência de um banheiro com chuveiro, mas a alegria durou pouco. A água não era quente e a temperatura ambiente era um pouco baixa. E o banheiro estava infestado de baratas, besouros e outros insetos voadores, se esquivar deles foi uma tarefa que levou alguns minutos. Mas pelo menos eu estava limpo.

Em um restaurante paralelo ao posto, que na verdade não sei nem se podemos chamá-lo por este nome, pois existiam apenas algumas mesas antigas e funcionários que pareciam estar em suas casas sem nenhuma preocupação. Mas nos atenderam bem e rapidamente nos disseram o cardápio, papas fritas, arroz, ovo frito e o delicioso pão de entrada. Novamente sem opção, nos resta aceitar.

Com a barriga cheia e com 192 km’s pedalados no dia, voltamos para o acampamento e cada um vai dormir em sua barraca. Sem nenhum problema durante a noite, consegue-se realmente dormir, diferente das vezes que acampei durante a Travessia do Paraná, talvez fosse pelo fato de estarmos em grupo.

Levantamos era cerca de cinco horas da madrugada. Sim, existe a necessidade de acordar cedo, leva-se um bom tempo para montar a barraca, tirar o alforje e a bagagem, o processo contrário também se exige o mesmo esforço. Por isso, embarcar em uma aventura desse porte não é simplesmente sair de bicicleta e pedalar, existe todo um planejamento para viver na estrada.

O meu quarto dia de viagem começou com atraso para variar. O João já tinha partido quando eu ainda acabava de colocar o alforje no bagageiro. E o Aramis só estava me esperando para então seguirmos para mais um dia que seria repleto de desafios, uma verdadeira aventura. A bicicleta suja era sinal da falta de acostamento uma vez que fora da estrada exista somente terra ao invés de acostamento. E para ajudar essa terra barrenta em razão das freqüentes chuvas de verão, acaba afundando com o peso da bicicleta.

Começando o quarto dia de viagem, escuridão total.

O dia começa com escuridão, muita neblina e pouco tempo depois se visualiza um belo nascer do sol que proporcionou uma paisagem maravilhosa, onde uma revoada de pássaros nos faz companhia, algo digno de começar bem mais um dia na estrada. Mas esse dia prometia muitas surpresas. Estávamos em território pertencente à província Del Chaco, conseqüentemente, no lendário chaco argentino, famoso entre outras coisas, pelo clima quente e por suas extensas pastagens.

Iniciando o pedal da melhor forma possível.

Sol nascendo no horizonte

E a natureza sempre presente.

As características do chaco argentino são facilmente sendo presenciadas, começando pelas pastagens que se estendem pela planície por uma enorme área. A nossa sorte é a tranqüilidade na ruta 11 durante as primeiras horas da manhã, sem muito trânsito, os poucos veículos que aparecem nos ultrapassam a uma boa distância quando não vem outro veiculo na direção oposta. Quando isso acontece, ou passam bem rente da bicicleta ou buzinam para sairmos da pista, quando ocorre este último caso, estamos sujeitos aos atolamentos pela terra molhada, que neste momento não era em grandes proporções.

Neblina

Há muitas horas já estou pedalando sozinho novamente e começo a me preocupar com isso. Pois estou chegando bem depois que meus companheiros nos locais determinados para almoçar ou pernoitar. Não tinha a mínima intenção de atrasar a viagem, mas estava difícil pedalar mais rápido, esse aspecto se tornou evidente na primeira metade do dia. Em nenhum momento até a hora do almoço, os encontrei na estrada.

Pedalava tranqüilo mesmo sozinho, tinha uma certa insegurança com a falta de acostamento, mas nada relacionado a assaltos ou algo parecido. Também exista o receio de não encontrar meus companheiros e ter que seguir viagem realmente sozinho. Desde a saída de Mansilla, não foram muitos municípios pelo caminho, tornando o cenário deserto. Foi justamente por isso que me surpreendi pelo monumento histórico ao lado da estrada antes da cidade de Margarita Belén. A obra de interessante expressão era em homenagem a “los compañeros peronistas montoneros fusilados el 13 de diciembre de 1976 por fuerzas conjuntas del ejercito, la policia del Chaco y la colaboración de civiles, durante la dictadura militar. Memoria y gratitud a su sacrificio por la libertad de la patria” conforme indicava uma placa fixada a uma das obras. Enquanto acadêmico de História fiquei fascinado pela memória estabelecida sobre um dos momentos de maior repressão em toda América Latina, que foi o período das ditaduras militares.

Regiões desérticas

Monumento em homenagem aquelas assassinados pela ditadura argentina

Masacre de Margarita Belén

Monumento histórico

Aproveitei o local para refletir, descansar e comer as milagrosas bolachas que me davam energia para continuar firme. Sempre durante as pausas aproveitava para alongar pernas, braços e costas, um exercício importante antes, durante e depois de qualquer pedalada, seja um simples passeio ou uma viagem. No meu caso, os alongamentos evitaram qualquer dano, principalmente aos joelhos que sofriam mais pela seqüência direta do giro estabelecido nas retas. Depois segui pelos últimos instantes na Ruta 11, passando por Colônia Benitez, capital botânica da província. Sem tempo e atrasado, não adentrei pela cidade para observar seus atrativos e continuei em direção à Resistência, local onde esperava encontrar meus companheiros sumidos, como ficara combinado para almoçarmos.

Na entrada da cidade, um fluxo maior de veículos indicava que a cidade era um pouco maior que as demais por onde havíamos passado. Um trecho de acostamento finalmente, e por incrível que pareça, uma placa destacando atenção em razão da circulação de ciclistas pela rodovia. Não estávamos sozinho, pensei. Na rotatória tinha duas alternativas para seguir, para a Ruta 16 que seria nosso caminho, conforme o roteiro ou seguir para a cidade. Sem muita razão escolhi entrar na cidade, qualquer coisa bastava retornar. Fiz a escolha certa, poucos metros a frente, em um movimentado restaurante vejo as bicicletas carregadas, felizmente encontro meus parceiros. Era certo que estavam há algum tempo no local, mas para minha surpresa, o João estava aproximadamente três horas na cidade. Aramis chegou um tempo depois. Ambos já tinham almoçado, procurado uma bicicletaria para comprar capacetes novos, pois ninguém estava disposto a pagar pela ausência dos cacos. O João aproveitou e tirou uma cópia dos mapas para mim, se eu ficasse para trás e não encontrasse a equipe, teria que seguir sozinho. Agora pelo menos eu tinha o roteiro em mãos.

Chegando em Resistencia

No restaurante uma boa notícia, um buffet parecido com aquele de Caacupé no Paraguai, com a diferença de ter um cardápio mais diferenciado, alguns pratos eu desconhecia totalmente. Servi-me rapidamente, procurei me alimentar com muita massa e carnes. A comida estava boa e quase não descansei após o almoço, pois existiam mais cem quilômetros pela frente, distância já percorrida até aquele momento.

O referencial. Saímos todos juntos de Resistência e eu havia tomado uma decisão, tentar acompanhar o Aramis, pois seguir o João era quase uma missão impossível. Foi então que começava uma parceria de verdade. O Aramis seria meu referencial, dizia brincando, mas falando sério. Não estava nada propenso a pedalar o resto da viagem sozinho. Eu deveria mudar algo, mesmo com todas as dificuldades. E foi assim que busquei pedalar no ritmo do Aramis. Decisão correta.

Mudança no tempo.

O tempo estava fechando e anunciava chuva pelo caminho. Não demorou muito e chuva começou a cair após sairmos de Resistência e seguirmos pela Ruta 16.Era chuva mesmo, em grande quantidade e muito forte. Era um perigo a mais em uma estrada sem acostamento e com aumento do fluxo de veículos que perdem a visibilidade em condições como aquelas. Seguimos cautelosos em direção à Makallé, em determinados trechos foi inevitável sair da pista para não ser atropelado.

Após uma parada rápida em um posto na entrada de Makallé seguimos viagem, agora já sem chuva. O João já estava mais à frente, enquanto eu continuava acompanhando o Aramis. De repente uma motocicleta com dois ocupantes param fora da pista e aguardam a nossa aproximação. Percebemos pela placa que eram brasileiros e resolveram nos parar pela identificação da bandeira do Brasil na minha bicicleta. Eram de Santa Catarina e estavam fazendo praticamente o mesmo caminho que o nosso. Trocamos algumas informações do trajeto a partir dos mapas, conversamos um pouco sobre a viagem de ambas as partes e desejamos sorte a cada aventureiro no decorrer da expedição.

Aventureiros de Santa Catarina

Quando encontramos os motociclistas brasileiros, paramos todos fora da pista, já que não existia acostamento. O trânsito ainda continuava intenso nesta região de Resistência e nada de aparecer uma área de segurança para pedalarmos. Assim que nos despedimos dos conterrâneos voltamos para a estrada. Neste momento o João segue na frente, logo depois o Aramis, que ao entrar na pista foi surpreendido por uma caminhonete em alta velocidade que não conseguiu desviar e acabou atropelando nosso companheiro. Como eu estava ainda fora da pista, preste a entrar na rodovia, presenciei toda a cena trágica. O veículo bateu o retrovisor do lado direito no ombro do Aramis que é lançado para o meio da pista com o impacto da batida. Por muita sorte, nenhum outro automóvel passava pelo local, caso contrário seria muito difícil evitar uma tragédia ainda maior. Algumas escoriações no braço e um pequeno inchaço foram as conseqüências físicas. Mas ficamos todos apreensivos com a situação. Estávamos cientes do perigo da estrada, principalmente pela ausência de acostamento. Mas ninguém esperava que um companheiro estivesse envolvido por uma condição deste porte. Ficamos indignados com a posição do motorista que não parou para prestar qualquer tipo de atendimento e prosseguiu em alta velocidade deixando para trás o retrovisor que ficou na pista com a colisão.

Vestígios do acidente

Felizmente, estava realmente tudo bem com o Aramis, apenas poucos arranhões e o inchaço no braço que fora atingido. Minutos após o incidente, percebendo que o amigo estava em condições de seguir viagem, João Paulo solta uma gargalhada da situação, talvez para amenizar a tensão do momento. Não sei se a atitude surtiu efeito. Com o sinal positivo do amigo para continuar pedalando, voltamos todos para a estrada.

Não demorou muito para o João desaparecer no horizonte. Mas consegui manter o mesmo ritmo do Aramis e seguimos pedalando juntos durante todo o restante do dia. Conversávamos sobre vários assuntos, mas o principal era o milagre de não ter acontecido um acidente mais grave. Estávamos de acordo sobre a sorte ou uma força divina, nunca se sabe, que esteve em sua companhia na hora do acontecido. Tínhamos nosso momento de raiva pela condição da estrada, pois não eram poucas as vezes que saiamos fora da pista em razão do fluxo de veículos nos dois lados da estrada, ao ouvirmos a aproximação de um veículos já ficávamos atentos, se não viesse outro na direção contrária, era possível nos mantermos na pista, pois o veículo que vinha atrás poderia nos ultrapassar em segurança. Para ajudar, o terreno fora da pista era cada vez mais barrento e não agüentava o peso da bicicleta, se pedalássemos um pouco mais devagar acabaríamos atolados, afinal choveu muito horas antes.

As bicicletas neste instante estavam cheias de barro, inclusive o alforje da minha Magrela estava molhado e sujo, necessitando urgente de uma limpeza, os freios já não funcionavam bem pela quantidade de barro nas sapatas. Com todas essas circunstâncias chegamos a Presidencia de La Plaza quase nove horas da noite, com uma quilometragem novamente alta, 205 km’s no dia. Extremamente cansados, encontramos o João em um posto de combustível na entrada da cidade. Iríamos passar a noite em uma área gramada atrás do posto. Depois de montar acampamento, era hora de limpar o alforje e a bicicleta, com uma torneira do local conseguimos tirar a maior parte do barro, equipamentos prontos para o dia seguinte. Era hora de comer e dormir.

No posto havia uma loja de conveniência que servia alguns salgados e pizzas pequenas, aproveitamos e pedimos algumas e de acompanhamento refrigerante. Lembro que foi a primeira vez que utilizei cartão de crédito no exterior, realmente quando a bandeira do cartão é de limite internacional, funciona de verdade, pois estávamos em pleno norte da Argentina e não tive nenhum tipo de problema, muito pelo contrário, como na fatura a cotação do dólar é no preço oficial, acabei pagando mais barato, ou seja, compensa utilizar o cartão. Uma pena que na região não encontrei vários estabelecimentos que aceitavam essa forma de pagamento.

Após jantar, estava na hora de dormir, felizmente mais uma noite tranqüila, afinal merecíamos depois de um dia longo e repleto de acontecimentos. Estou tentando recordar se tomei banho antes de dormir, mas acho que não, pois não consigo lembrar. Acho que me lavei quando fui limpar a bike. Não faz mal, o importante é estar limpo.

Quinto dia de viagem desde a saída de Foz do Iguaçu. Nosso destino do dia era chegar em Los Frentones. Levantamos às quatro horas da madrugada, às cinco horas já estávamos todos prontos para seguir viagem. Essa é a realidade de quem esta viajando com os dias contados e com uma programação pronta para ser desafiada independente dos obstáculos que apareçam no caminho.

Saídas sempre de madrugada.

Na estrada era tudo escuro e quase deserto, poucos veículos e tudo muito calmo. Aliás o fluxo de automóveis seria bem menor durante o restante do dia, para a nossa sorte, pois ninguém merece pedalar quilômetros e mais quilômetros sem acostamento e na presença de todos os tipos de veículos a todo instante. Para não perder o costume, o João em seu ritmo próprio acabou desaparecendo pela escuridão. Na parceria do companheiro Aramis, vamos desafiando cada quilometro com muita conversa e música

Era apenas o começo de mais um dia.

A noite cede lugar a claridade dos primeiros raios solares e pouco tempo depois o sol imponente já está todo visível proporcionando uma bela paisagem no pampa argentino. Na região norte do país existem poucos municípios, por isso pedalamos muito tempo sem encontrar nada pelo caminho, quando surge alguma cidade, ela mais parece um povoado. Em um desses lugares, uma curiosidade nos fez registrar o momento, na fachada de uma casa à beira da rodovia uma pintura se destaca. É a caracterização de três personalidades importantes na América Latina, Fidel Castro, Che Guevara e Hugo Chaves. Ambos responsáveis por uma luta social e política que marcaram a História de um continente que está em constantes transformações.

Os três personagens em destaque.

O que marca esse dia de viagem é mesmo as altas temperaturas da região. O lendário pampa argentino é conhecido por esse clima extremamente quente. Esse aspecto é mais presente conforme a tarde vai chegando. Estamos cada vez mais em lugares desérticos, onde a planície extensa continua coberta com a vegetação rasteira. Uma cidade no caminho chama atenção pelo seu nome, Pampa del Infierno. Era uma alusão clara do ambiente em que o município estava localizado. Foi a região mais quente de toda a viagem. Saberíamos mais tarde que o Bruno passou mal e necessitou de cuidados médicos por uma insolação obtida neste território. Eu estava totalmente queimado pelo sol e a pele apresentava sinais evidentes dessa ação que pode ser perigosa sem a proteção de um filtro solar.

Pele queimada do sol.

Muito antes de chegar em Pampa del Infierno, a Ruta 16 estava com uma diferenciação em seu asfalto, a falta de acostamento continuava, mas a cor era diferente, com um tom avermelhado que persistiu por centenas de quilômetros. Não sei o material exato utilizado na construção da rodovia, mas de qualquer forma era difícil encontrar buracos e o deslocamento era feito sem maiores problemas.

Asfalto avermelhado

Na região encontramos tipos diferentes de produção, como algodão e girassol, este último é aproveitado extraindo seu óleo. A plantação de girassol se destaca pela aparência peculiar, que por muitos trechos nos fez companhia na estrada. Claro que registramos esses momentos, principalmente, antes de Bermejo, onde o Aramis com seu enorme capacete e parecendo um vietnamita posa para fotos ao lado de crianças locais impressionadas com a nossa presença.

Extensas áreas de girassol

Aramis vietnamita meio as crianças

Curtindo a liberdade.

Em Concepcion del Bermejo, paramos para almoçar em um pequeno posto de combustível onde havia uma lanchonete da mesma proporção. Pampa del Infierno estava há 26 km’s e Los Frentones há 50 km’s. Portanto, estávamos adiantados e quando fizemos a parada do almoço era quase duas horas da tarde, tínhamos um tempo maior para descansar, sorte nossa. O almoço, menu de sempre, milanesa com papas fritas e arroz, demorou em sair, mas demorou mesmo e não era por ter muita gente no local, pelo contrário, creio que não esperavam mais ninguém. Além da nossa presença, tinha apenas mais um ou dois casais aguardando a comida. Neste intervalo devoramos o prato de entrada, os pãezinhos deliciosos, como o almoço levou um tempo para ser servido, foram duas cestas de pães. A comida era boa e acabou em poucos minutos.

Com uma tarde toda pela frente e apenas 50 km’s para serem pedalados, descansamos após o almoço, eu ainda aproveitei o chuveiro do banheiro para tomar um banho caprichado, fazer as necessidades e ajeitar a barba. Enquanto isso os companheiros recolhiam suas roupas que haviam sido estiradas ao sol para secar, até então nenhum problema, mas fizeram isso bem na estrada da lanchonete, uma cena lamentável. Depois desse episódio comecei a brincar, chamando-os de mendigos.

Secando a roupa na frente do restaurante.

Posto de combustível em Concepcion del Bermejo

Após um bom descanso, tivemos que encarar o calor extremo na estrada. O Infierno estava cada vez mais próximo e a temperatura elevada a cada giro do pedal. Mesmo com a pouca distância, chegamos a Pampa del Infierno já cansados e exaustos pelo sol forte. Paramos para tomar um refresco antes de seguir para Los Frentones. Com o pouco movimento na estrada conseguimos pedalar tranqüilamente e conversar, contamos boas histórias, o camarada Aramis é um excelente companheiro de viagem. Não faltaram momentos engraçados.

Nome bem sugestivo para o local.

Aramis, o referencial.

Era muito cedo quando concluímos o roteiro programado para aquele dia. Em Los Frentones, cidade que na verdade se resumia a um pequeno povoado, encontramos novamente um pequeno posto de combustível, já fechado, ainda mais simples do que em Bermejo. Fomos autorizados a levantar acampamento atrás do posto. Sorte que já havia tomado banho na hora do almoço, pois não tinha banheiro e nem mesmo uma lanchonete no local. Resolvemos deixar as bicicletas presas e as coisas dentro das barracas e sair para procurar um lugar para comer alguma coisa. Era tão cedo que a cozinheira do estabelecimento ainda não se encontrava. Acho que não existe vigilância sanitária pela região, pois o lugar não era muito higiênico, encontramos gatos, cachorros e até galinhas percorrendo o espaço das mesas e cozinha. Sem alternativa, não nos prendemos a esses detalhes e ficamos esperando a chef, quando ela finalmente chegou, logo foi preparando nossos pratos que nem preciso dizer o qual foi. Comemos assistindo televisão, um canal argentino que mostrava algum programa esportivo. Assim que jantamos voltamos ao acampamento. Hora de dormir após 178 quilômetros pedalados.

Acampamento em Los Frentones

O sexto dia da aventura começa muito cedo e às seis horas já estamos na estrada, muito sono marca os quilômetros iniciais. As retas não têm previsão nenhuma de terminarem conforme ilustração dos mapas. Mas logo que clareia o dia, o sol aparece com força total e novamente enfrentamos um calor quase insuportável. E com uma temperatura elevada, temos necessidade de hidratar o corpo freqüentemente. Mas um detalhe marca esse nosso dia. A falta de um item indispensável, água. A que havia disponível na torneira do posto em que pernoitamos, logo que clareou o dia ficou visivelmente que estava com a presença de lodo ou qualquer outro tipo de matéria orgânica. Racionar água com aquela condição climática não seria uma tarefa fácil.

Pedalar cedo não é fácil ..

.. mas vale a pena.

Uma das melhores horas do dia.

A estrada continua com suas retas infinitas, mas o asfalto começa ficar com uma qualidade inferior, em determinados trechos simplesmente não existia asfalto. Acontece que na Argentina a responsabilidade das rodovias é de cada província (ou estado no Brasil), então era comum notar no imediatamente ao entrarmos em uma outra província a diferença no asfalto. Na província de Santiago del Estero foi o trecho mais longo com estrada ruim que enfrentamos em toda a expedição. Entre as cidades de Rio Muerto e Los Pirpintos passando das nove horas da manhã uma Pajero com a placa de Vinhedo, estado de São Paulo, para na estrada ao identificar a bandeira do Brasil. Era um casal muito simpático que achou interessante a nossa viagem, conversamos sobre o roteiro e como estava a viagem até o presente momento. Eles que estavam indo à San Pedro do Atacama no Chile, já haviam sentido a ação da policia argentina que também cobraram propina pela ausência de um equipamento necessário nos Andes. No final trocamos e-mails e desejamos boa viagem.

O péssimo estado da rodovia.

Santiago del Estero

Encontro de brasileiros na Argentina

Casal de São Paulo em direção ao Chile.

Continuava muito quente e a estrada em péssimo estado. Em algumas partes do trajeto caminhões pipas molhavam a pista para evitar a poeira com a passagem dos veículos. Avançando na estrada, passamos por povoados onde a criação de animais parecia ser um meio de se ganhar a vida. Cabras em bando se tornaram freqüentes pelo caminho, era necessário uma atenção especial para passar sem nenhuma colisão.

A vida pacata da região.

Na hora do almoço, passamos por El Caburé, um pequeno povoado no meio do nada. Na entrada da cidade o João que chegara antes no local, encontrou um pessoal que se disponibilizou a nos acompanhar de carro até um lugar onde poderíamos comer alguma coisa. Assim que eu e o Aramis chegamos, fomos diretos a uma mercearia onde encontramos um pessoal muito simpático.

Nativos

Ao chegar no Cami-Fer, o local que nos indicaram, descobrimos que era uma espécie de mercearia completa, com direito a verduras e legumes. Mas o almoço na verdade não tinha. Mas o dono do lugar fatiou alguns pedaços de pão e queijo para comermos com refrigerante. Não era muita coisa, mas conseguimos enganar o estômago. A bebida nos fez matar a sede que estava insuportável.

No Cami-Fer tinha uns três, quatro amigos que tinham bebido além da conta e estavam um pouco alterados, com a nossa presença começaram a conversar sem parar, inclusive futebol estava entre os assuntos, claro que não poderia faltar a velha rivalidade entre Brasil e Argentina. Sinceramente não sou nada adepto de bebidas alcoólicas e muito menos apreciador de pessoas que se encontram no estado que aqueles homens se encontravam. Assim não conversei muito e logo depois do almoço fui me deitar no chão da parte lateral do estabelecimento. Diferente dos meus companheiros, não gosto de tirar um cochilo após o almoço, mas aquela sombra mesmo que pequena foi irresistível, a luva sobre o capacete me serviu como travesseiro e por alguns minutos tirei o sono dos justos.

Assunto: Futebol, Brasil x Argentina.

Sono dos justos.

Quase na saída do inesquecível lugar, o Aramis lembra de pegar água para deixarmos de reserva. Antes resolve ir ao banheiro, uma pequena cabana de madeira no fundo do quintal, ao lado nada menos que uma pequena poça d’água onde um porco refrescava-se em seu interior, tudo muito higiênico é claro, brincadeira. A água que pegamos estava praticamente da cor do lugar onde porquinho se encontrava. Infelizmente era a única água disponível, não tomei.

Básico.

Novamente na estrada o cenário não muda muito, retas, asfalto com buracos, cabritos, bois e outros animais no meio da estrada e um calor infernal. Tentei economizar a água boa que tinha ao máximo, mas chegou uma hora que ela acabou, como àquela que pegamos na mercearia estava muito suja, restou apenas a do posto de Los Frentones que continha umas matérias orgânicas desconhecidas. Resumindo, não tinha água potável para beber. O que fazer em uma situação dessa? Simples, pedalar o mais rápido possível. Um dos poucos momentos que deixei o Aramis para trás. O próximo povoado era Los Tigres, onde imaginei que era uma cidade, mas na verdade era menor que um povoado, poucas casas e fornos de olaria com aspecto de abandono faziam parte de uma ou duas ruas do local. Decepção ao pedalar naquela velocidade e não encontrar água. O João que já estava na entrada de Los Tigres deu risada da minha cara e me deu um pouco do restante de sua água. A sede era enorme, não via a hora de chegar em Monte Quemado, cidade em que pretendíamos passar a noite.

Animais na pista durante esse trecho.

Nas infinitas retas.

Los Tigres

Foram mais de trinta minutos de Los Tigre até chegarmos em Monte Quemado, parece pouco tempo, mas sob uma situação daquela pareceu um século. Logo na entrada da cidade, um posto de combustível onde com um pouco de receio o funcionário do local permitiu nossa hospedagem na parte de trás. Antes de montarmos acampamento, Aramis e eu matamos quase dois litros de refrigerante em um tempo recorde. Nunca uma bebida foi tão desejada. Eram seis horas da noite quando resolvemos montar as barracas, ou seja, ainda estava claro e a nossa movimentação chamava atenção de quem passava pela rua. É compreensível, um lugar isolado em uma região quente daquela, não era sempre que aventureiros apareciam.

Bicicletas carregadas com seres de roupas estranhas pedalando quase sempre chamava atenção da maioria das pessoas que passagem pela gente. Mas as crianças, essas ficam fascinadas com tudo que vêem, querem pegar, fazem perguntas sobre tudo e ainda assim não estão satisfeitas e pedem tudo de novo. Ao montar as barracas no posto de Monte Quemado, várias crianças de aparência simples se aproximaram e começaram a questionar desde as bicicletas até o colchão inflável dos companheiros. Não é que não goste de crianças, mas tenho um certo receio em dar muita ‘corda’ para elas, principalmente essas que não conhecemos direito. O João e o Aramis deixaram entrar na barraca, subir no colchão e tudo mais. Mas a criançada começou a fazer tanta festa e se empolgar que aquilo parecia um inferno e elas pegando fogo. Foi com esse ambiente que o Aramis tirou uma fotografia da criançada que é claro, fez pose, onde eu apareço ao fundo sinalizando as pestes.

Criançada curiosa.

O posto já estava fechado, mas o banheiro continuava aberto, não tinha um chuveiro propriamente dito, mas um cano de água que servia muito bem para ficarmos limpos. Cada um tomou seu banho e resolvemos sair e procurar um lugar para comer. Meio sem noção, deixamos nossas coisas nas barracas. Sem dúvida era um risco, mas ninguém se importou muito com isso, talvez por pensar que em pequenas cidades estamos isentos de uma ação inesperada de furto. Confesso que fiquei apreensivo em deixar tudo sem ninguém tomar conta. Mas a calma dos companheiros me fez seguir tranqüilo. Felizmente quando retornamos da lanchonete de um posto onde comemos algo que não me recordo, as coisas estavam em seu devido lugar. Mesmo assim, não recomendo que alguém faça isso, principalmente em uma área visível como aquela em que estávamos. A noite chegou, hora de descansar mais um pouco.

O mesmo ritual de todas as manhãs é feito no sétimo dia da expedição, o último dia do ano estava começando e nas suas primeiras horas eu já estava na estrada contemplando um esplêndido nascer do sol. Sem nenhuma dúvida, um dos melhores lugares para admirar esses momentos é na estrada, um lugar onde a natureza parece mágica.

Vivendo!

Avançando os quilômetros, chegamos a outra província, novamente, Del Chaco, o asfalto fica melhor consideravelmente. Mas a característica da paisagem e dos povoados que encontramos pelo caminho era praticamente a mesma. As suas casas eram geralmente muito simples, algumas erguidas em tijolo, outras apenas de barro do mesmo estilo de algumas construções no nordeste do Brasil. Uma situação de miséria aparente. O desenvolvimento econômico e social parecia ser algo muito distante da realidade daquelas pessoas.

Simplicidade ao extremo.

Na estrada, quase na província de Salta, Aramis e eu passamos o João Paulo pela primeira vez, mas era porque o pneu havia furado e ele estava trocando. Sem querer nossa ajuda, seguimos pedalando. A Ruta 16 na província de Salta estava infinitamente melhor do que a de Santiago Del Estero, mas como nada é perfeito, continuava sem acostamento. Tivemos a sorte que o movimento de veículos era quase inexistente, um carro e outro nos ultrapassava em um grande intervalo de tempo. A paisagem ainda é caracterizada pela vegetação rasa, típica dos pampas.

João Paulo trocando pneu.

O tempo fechado nos avisa que a chuva seria em breve. Antes da chuva, o João já no passa novamente e rapidamente desaparece na estrada. O céu fica realmente escuro, sinal de que uma tempestade se aproximava. Não demorou muito e a intempérie se tornou ainda mais intensa. Em nenhum momento da viagem paramos de pedalar em razão das condições do tempo, seja pelo sol extremo ou tempestades como essa na província de Salta. Como já mencionei anteriormente, não me incomodo em pedalar na chuva, parece que ainda ganho um ânimo extra. Desse modo, continuamos na estrada, mas sem dúvida foi o maior temporal que enfrentamos em toda a expedição. Talvez tenha nos acompanhado cerca de vinte quilômetros. Os raios e relâmpagos eram por todas as partes, muito próximos de onde estávamos. O João nos contou mais tarde, que um desses raios, chegou a assusta-lo verdadeiramente, quando caiu muito perto dele. Neste momento estávamos bem no centro da tormenta, nossa visão era quase nula. Pensamos em fazer uma pausa, mas a região era deserta. Sem alternativa continuamos, afinal uma hora aquela água toda deveria acabar.

Província de Salta

Muita chuva.

O tempo melhorou e chegamos em El Quebrachal, uma pequena cidade com uma charmosa entrada e praças conservadas, não muito comuns para municípios desse porte, pelo menos, por essa região. Como pegamos o temporal na estrada, nosso ritmo diminuiu um pouco e chegamos tarde em Quebrachal, já era quase duas horas da tarde, poucos restaurantes ou comedor como são chamados, estavam abertos. Encontramos um simples estabelecimento que era uma mistura de bar, lanchonete e restaurante. Mais uma vez fomos contemplados com o típico cardápio do norte argentino. Almoçamos e fomos descansar atrás de um restaurante fechado que oferecia uma sombra fora do cardápio. Fui deitar na grama e esqueci de tirar o velocímetro do bolso traseiro da camisa. Que azar, foi totalmente zerado. Minha sorte é que tinha todos os dados anotados em uma caderneta e ainda na hora do almoço olhei para a quilometragem do dia. Ficou fácil mudar para os dados corretos. Mas levei um baita susto.

Joaquim Gonzáles estava a menos de trinta quilômetros de Quebrachal, por isso ficamos um tempo maior descansando depois do almoço, uma tarde inteira para percorrer uma distancia relativamente pequena. Concluímos esse percurso até às seis horas da noite, mas o tempo ainda estava claro quando chegamos em Gonzáles, embora voltasse a ficar nublado e fosse possível visualizar onde a chuva estava caindo ao horizonte. Geralmente na entrada das cidades existem postos de combustíveis e restaurantes, por isso esses locais servem de apoio para quem viaja, sobretudo, de bicicleta. Foi fácil localizar um posto assim que chegamos na cidade. Logo montamos acampamento no fundo de uma área destinada para estacionar os caminhões. Era o último dia do ano e aproveitamos para conhecer a cidade, novamente deixamos todas as coisas no acampamento e saímos a pé em direção ao centro. Joaquim Gonzáles era o maior município desde Resistência. Os companheiros aproveitaram para fazer algumas compras pelas lojas que estavam movimentas as vésperas do ano novo. Procuramos uma lan para mandar noticias por e-mail. Mas infelizmente todas que encontramos estava sem sinal. Antes de voltarmos para o acampamento fizemos uma pausa em um restaurante e pedimos uma pizza que seria nosso jantar. Mais tarde ligamos para o Brasil mandando notícias e desejando um feliz ano novo.

Pancada

Esperando a virada do ano.

Ainda era cedo quando retornamos para nossas barracas, cansados, cada um foi dormir em sua casa ambulante. Apenas acordamos na virada do ano por causa dos fogos de artifício. Quando sai da barraca, encontrei o Aramis filmado os fogos, mas estava embriagado de sono que não lembrou meu nome quando direcionou a câmera em minha direção. Logo depois o João apareceu e cada um desejou feliz ano novo. Era uma família em um lugar diferente, começando literalmente um ano novo.

Não poderia começar melhor o ano. Nas primeiras horas de 2008 já estávamos na estrada. Antes de amanhecer, passamos por muitas pessoas que ainda estavam comemorando a virada na saída da cidade. Pouco tempo depois o sol nasce de uma forma magnífica e perfeita, um verdadeiro presente para os aventureiros da estrada. Cena inesquecível, um registro fotográfico incrível que mais parece uma obra de arte impecável. Mas a autora de tamanha beleza era nossa mãe natureza.

Finalmente terminaram as retas que nos acompanharam por mais de setecentos quilômetros. A ruta 16 após Joaquim V. Gonzáles agora estava diferente, com descidas e subidas, um alívio para nossos joelhos que não tiveram um momento de descanso durante os dias anteriores. Até as subidas foram bem recebidas. A paisagem também estava com outra forma, a planície passava a dar lugar a um terreno montanhoso com uma área florestal. Era possível ver ao horizonte uma cadeia montanhosa imensa, que parecia um paredão. Aramis a chamou de Pré-Andes. Era realmente um cenário novo para quem se acostumou com o pampa argentino. A condição da estrada, no entanto, não era melhor, em alguns trechos com vários buracos. Mas estávamos felizes com tudo ao nosso redor que não nos importamos com a estrada, apenas fizemos um filme mencionando que não era apenas no Brasil que existiam rodovias em péssimo estado.

Finalmente descida.

O cenário começando a mudar..

.. montanhas

Agora as subidas, descidas e curvas faziam parte do percurso. Era muito bom fazer um esforço e sentir os músculos trabalhando em uma subida. As montanhas ficavam cada vez mais presentes, não era uma ou outra, eram várias, uma verdadeira cadeia montanhosa. Era um sinal claro que a Cordilheira dos Andes estava próxima a cada quilômetro.O trecho final da ruta 16 nas proximidades de El Galpón começou a ter um efeito diferente no ritmo de pedalada. Aramis e eu estávamos em um giro menor, não parecia uma subida, aparentemente era uma reta a uma altitude maior, mas a bicicleta não se deslocava facilmente e olha que o vento estava calmo. Foi preciso muita paciência e força nas pernas para encarar esse curioso efeito das montanhas. Para evitar o agravamento da situação, a solução foi acenar para os automóveis, não para pedir carona, mas para cumprimenta-los, afinal era ano novo. Era divertido o entusiasmo das pessoas em retribuir nosso gesto. Na companhia do camarada Aramis, ainda conversávamos bastante, principalmente sobre a estrada, xingamentos não eram raros.

Finalmente uma rodovia diferente, bastou sair da ruta 16 e entrar na 34 em direção à Gral. Guemes que a bicicleta começou a se deslocar de modo mais rápido, as subidas não acabaram, posso até dizer que se tornavam mais constantes, era uma pista dupla, a primeira que encontramos na Argentina, era larga e distribuída em duas faixas, assim pedalávamos com mais segurança na faixa da direita.

Na Ruta 34

Agora montanhas para todos os lados.

É difícil mencionar sobre a vida da população local, pois essa era inexistente, a região continuava desértica no que diz respeito à civilização, os povoados que as vezes apareciam pelo caminho também ficavam mais raros. Contudo, a paisagem se tornava ainda mais bela. Lembrava muito a Serra do Mar no Paraná. Chegou a hora do almoço e não tinha nenhum lugar pelo caminho, aqueles poucos que encontrávamos estavam fechados, afinal era feriado, ano novo. Em uma casinha à beira da estrada fizemos uma pausa apenas para comer nossas bolachas que não podiam faltar na bagagem e ainda aproveitar a sombra do local, claro que pedimos autorização do morador. No entanto, na casa havia uma menina que estava brincando de soltar bombinhas. Com fome e cansado, acabei não agüentando aquele barulho provindo dos explosivos. Avisei os dois companheiros que iria procurar uma sombra mais tranqüila à frente. Estávamos diante de um pequeno povoado, atravessei a rodovia e avistei um local que parecia uma igreja. Fui pedir água e permissão para descansar na sombra de uma árvore enorme que tinha no quintal.

Mosteiro.

Fui me aproximando aos poucos da tal igreja e encontrei uma pessoa que parecia de uma descendência oriental e não me entendia muito bem. Aos poucos foram chegando outros rapazes, todos muito diferentes um do outro. Com alguns consegui dialogar e expliquei a situação, mencionei que gostaria apenas de um descanso tranqüilo e de água. Brevemente falei da viagem de bicicleta. Ficaram todos interessados em saber mais detalhes, foi quando citei os dois amigos que estavam próximos do local. Descobri que era um mosteiro, os rapazes hospitaleiros eram monges de diversos países da América Latina. Durante a conversa questionaram se eu estava com fome e não gostaria de almoçar. Não neguei o convite que também foi feito para o Aramis e João. Fui chamá-los e expliquei o que tinha acontecido.

De volta ao mosteiro, por sinal, um lugar cuidadosamente limpo e organizado, que transmite uma paz e harmonia difícil de descrever. Os monges foram preparar a mesa do almoço, enquanto conversávamos com outros do lado de fora. Falamos sobre a viagem, o que fazíamos em nosso dia a dia, inclusive profissionalmente, o roteiro que estávamos seguindo e tudo mais. Quando somos convidados para entrar e almoçar, mais uma surpresa. A mesa estava cuidadosamente posta. O cardápio era uma deliciosa macarronada com direito a queijo ralado e suco de laranja. Para quem estava pensando apenas em uma sombra, aquilo era um banquete dos deuses. Almoçamos bem, conversamos bastante durante a refeição, embora algumas frases eram difíceis de serem compreendidas. Mas nos entendemos e até repetimos o prato. Agradecemos infinitamente a hospitalidade.

Depois do almoço, os monges fizeram questão de mostrar o local de orações, o mesmo onde eu pensara que era a igreja. Nos explicaram de forma resumida o funcionamento do mosteiro e ainda nos levaram à parte de cima do lugar, de onde tivemos uma vista maior do espaço onde viviam. Nos convidaram para um banho de rio, que ficava a poucos metros da propriedade, mas como estávamos com tempo limitado, recusamos o convite. Ao final ainda descansamos debaixo das árvores antes de partir. Aproveitamos a água limpa e enchemos as caramanholas. Desde Monte Quemado que não tivemos mais problemas com ausência de água boa, ainda bem.

Nos despedimos de todos no mosteiro e agradecemos muito mais uma vez. Nos deram comida e descanso, uma verdadeira hospitalidade e não nos cobraram nada. Nada melhor para resumir essa recepção do que um pequeno trecho da bíblia escrito em um pedaço de madeira no tronco da árvore. “Felices los que tienen Alma de pobre...”

Amém!

Retornamos à Ruta 34 e continuamos a viagem, poucos metros depois do mosteiro, passamos sobre a ponte do rio em que fomos convidados a nos refrescar. Adiante, começaram uma sucessão de sobe e desce que foi extremamente cansativo. Nossa estratégia foi continuar nos divertindo durante a pedalada, acenávamos para os veículos que na maioria das vezes retribuíam o cumprimento. Eu particularmente, tirei poucas fotos desse trecho, principalmente quando nos aproximamos de Gral Guemes, onde a pista de mão dupla termina e a rodovia simples sem acostamento retorna para nos deixar totalmente sem segurança, pois o aumento de veículos era intenso. Por muitas vezes tive que sair da estrada e para retornar era um sacrifício em razão do desnível entre os terrenos. Com muito esforço chegamos a entrada de Guemes, onde ficamos em um enorme posto de combustível, era na verdade um complexo destinado para todos os viajantes, desde turistas a caminhoneiros. O acampamento foi montado bem na parte de trás da enorme área, próximo a um caminhão com a placa de Foz do Iguaçu, era André, um caminhoneiro que estava viajando a trabalho com a família, conversamos um pouco, trocou alguns pesos argentinos com o Aramis e logo saiu do lugar. No posto havia um banheiro enorme em comparação ao que encontramos até então. Vários chuveiros disponíveis e com água quente. Na loja de conveniências comprei bolachas para economizar e logo voltei para a barraca e fui dormir. Durante a noite o barulho que incomodava era o de caminhões chegando e saindo a todo o momento. Mas nada que impedisse de descansar.

Quase sem água, cena comum na região.

Sem acostamento é complicado.

Acampamento em Gral Guemes.

No dia seguinte, já no nono dia da aventura, saímos não muito cedo, pois a distância do dia se limitava a setenta quilômetros. Não era por acaso, foi tudo planejado, percorrer uma distância maior durante os primeiros dias da Expedição, principalmente na região de planície e conforme a Cordilheira dos Andes se aproximasse, diminuiríamos a quilometragem, pois saberíamos teoricamente que não seria fácil pedalar pelas famosas montanhas andinas.

De Gral Guemes pegamos a Ruta 66 em direção a Perico para finalmente chegarmos em San Salvador de Jujuy. A província de Jujuy foi a mais bonita do norte argentino. Começamos pedalando por rodovias simples sem acostamento, mas depois de Perico, a estrada é larga, mão dupla e segue dessa forma até San Salvador. As montanhas estão por todas as partes, mas também temos a oportunidade de conhecer os rios sazonais, ou seja, em determinadas épocas do ano sua vazão é quase nula. É uma imagem diferente, ver rios enormes totalmente vazios, mas é um fato que se tornou freqüente por muitos outros lugares.

Primeira informação sobre a divisa.

Sentido San Salvador

Conforme prosseguíamos, apareciam placas nos informando a distância das cidades por onde passaríamos, como Purmamarca, Susques e Paso de Jama, estavam a uma longa quilometragem, mas indicavam que estávamos no caminho certo e o Chile ficava cada vez mais perto.

San Salvador é uma cidade grande, talvez a maior em que passamos em toda a Argentina. O fluxo de veículos aumenta, mas a estrada é boa, mão dupla, sem maiores problemas para pedalar. Antes da chegada, conseguimos visualizar alguns prédios que sugeriam uma população maior. Na entrada da cidade, já encontramos um restaurante simples mas muito movimentado, não hesitamos muito em parar. Comida barata, algo em torno de 6 reais. O cardápio poderia ser diferente em lugares mais sofisticados ao centro, mas por ora, se resumia ao menu que estávamos acostumados.

San Salvador de Jujuy

Ficamos um pouco no restaurante depois do almoço, o Aramis aproveitou para procurar uma bicicletaria e fazer ajustes nos raios. Depois fomos procurar uma lan para descarregar as fotografias e vídeos em cd para liberar espaço no cartão de memória. Não foi preciso andar muito pela cidade e logo encontramos um lugar para mandarmos noticias pela internet. Ficamos um bom tempo na lan e passamos em uma padaria parar comprar pão, Aramis foi à uma farmácia e me trouxe um protetor solar, pois os meus haviam acabado. Realizada as coisas que precisávamos, fomos em busca de um posto de combustível na saída da cidade, para então montar mais uma vez acampamento. Achamos um posto, mas na verdade as barracas foram montadas em um terreno baldio ao lado de uma igreja que por sua vez ficava próxima ao posto, bastava atravessar a rua.

No posto, utilizamos apenas a loja de conveniências para comprarmos comida e usar o telefone, uma ligação na Argentina é infinitamente mais barata que no Brasil, mesmo ligando para o exterior. O banheiro do lugar era bem higiênico, mas sem chuveiro. Esse dia fiquei sem uma limpeza geral.

Mais uma noite marcada pelo som dos caminhões que passavam pelo posto. Mas aproveitei os cochilos para descansar um pouco, embora o dia anterior tivesse sido de apenas de setenta quilômetros, não exigindo um esforço maior do corpo.

Na manhã seguinte começava o décimo dia de pedal e surpreendeu a todos nós. Finalmente estávamos na Cordilheira dos Andes, a cadeia de montanhas foi presença durante todo o trajeto pela ruta 9. Nosso destino era Purmamarca, uma cidade conhecida pelo maravilhoso monte das sete cores, que ficava há 75 km’s de San Salvador. O dia começou cedo para os aventureiros do pedal. E logo nos primeiros raios de sol, surgia um cenário magnífico no qual não esperávamos. Montanhas nos cercavam de todos os lados. Vales cortados por um extenso rio que ficava paralelo à estrada, proporcionando um visual simplesmente magnífico.

Começando o dia..

.. entre as montanhas

A cordilheira dos Andes começava a aparecer.

Passamos por alguns povoados no caminho, em um deles tive que procurar pilha para a maquina fotográfica, encontrei apenas pilhas simples, mas que foram suficientes para registrar o momento mais intenso da viagem. Para ter uma idéia foi o dia que mais utilizei a câmera para tirar foto.

Bendito lugar.

Cada vez mais próximos da Quebrada de Humahuaca, a altitude aumentava consideravelmente, tornando o ângulo de visão ao redor ainda mais privilegiado, no Mirador Leon pode-se verificar a altura em que estávamos pedalando. E a tendência era ficar ainda mais alto. Não demorou muito e chegamos à Cuesta de Barcena, a primeira subida em forma de caracóis que enfrentaríamos na viagem. Resumidamente, elas são construídas dessa maneira em razão da grandiosidade da montanha, principalmente, a altura, na impossibilidade de fazer uma única subida, que tornaria um aclive gigantesco, a solução é a construção de uma rodovia na forma de caracóis. Isso torna uma distância de cinco quilômetros em vinte e cinco. Não foi o caso de Barcena, mas subimos muito, até então estávamos pedalando juntos desde San Salvador, mas acabei ficando para trás. O peso da minha bagagem era um obstáculo a mais nas subidas. E eu estava sentindo na prática que não seria nada fácil vencer os Andes. Algumas paradas são realizadas para apreciar a natureza e sua obra de arte, assim como descansar para prosseguir.

Paisagens maravilhosas

Firme e forte.

Na direção de Leon.

Mirador Leon. Um dos lugares mais belos da viagem.

O trecho já vencido.

Natureza

A estrada é sem acostamento, mas o fluxo de veículos é baixo, o que não dificulta nosso deslocamento. Quando olhava para trás, tinha uma idéia exata do quanto estava subindo, não era algo qualquer, não era uma simples serra. Era a cordilheira dos Andes mostrando sua grandiosidade. O dia estava extremamente limpo, perfeito para registrar as paisagens. Mas também estava quente o que dificultava ainda mais as subidas. E agora era apenas subida e mais subida. Quando chegamos na Quebrada, patrimônio cultural e natural da humanidade, declaração concedida pela Unesco, foi que começamos a descer de forma alucinante até Volcán, peguei uma revoada de insetos durante a descida, onde alguns ficaram grudados na pele por causa do protetor solar.

Subida forte.

Em Volcán, pórtico da Quebrada, encontrei novamente com o João e Aramis que haviam chegado já há algum tempo. Durante a parada, conseguimos o privilegio de acompanhar a descida e subida de um bando de ovelhas em uma enorme montanha, uma prova de como os animais e também os seres humanos, conseguem se adaptar ao mais diversas condições de vida.

Volcán

Ovelha negra da família.

Aproveitamos para conhecer uma antiga estação de trem inglesa, onde atualmente funciona uma feira campesina com artesanatos produzidos pela população local, formada em sua maioria por descendentes indígenas. A feira continha uma variedade enorme de roupas com estilo andino, infelizmente não pude comprar nenhuma lembrança para poder economizar e seguir viagem. Mas visitar a feira e admirar a obra daquelas pessoas, já foi um presente e tanto.

Antiga estação de trem.

Hoje, Feira Campesina.

Muitos artesanatos.

Vários foram os rios que apareceram em nosso caminho pela Ruta 9, a maioria deles estava com uma capacidade mínima de água. A vegetação começava a apresentar mudanças, se tornava constante a presença de cactos gigantescos nas montanhas, essas em algumas partes eram de um terreno totalmente árido. Passamos pelo povoado de Tumbaya, que estava a 2.034 metros de altitude, conforme, indicava a placa na estrada. Era quase impensável ver como algumas construções foram realizadas no alto de montanhas diante de um clima seco e árido.

Flora.

Tumbaya

Seguindo para Purmamarca as montanhas continuam, mas suas características mudam, principalmente, no que diz respeito a cor. São diversas as cores que presenciamos pelo caminho, entramos na Ruta 52 em direção à Purmamarca, conforme avançamos, não conseguimos acreditar que no meio de tantas montanhas poderia surgir uma cidade. Eram gigantescas montanhas ao nosso redor, quando de repente começam a aparecer casas com todo um estilo próprio da região. Um sinal que estávamos em direção a um lugar que eu não poderia imaginar de como era.

Sentido Purmamarca

Belezas naturais do norte argentino.

Quase na entrada da cidade, encontramos duas argentinas mochileiras que conversaram conosco e seguiram viagem. Era mais um sinal de que o local era mesmo turístico. O caminho parece algo mágico, admira-se tudo, a paisagem, vegetação, a arquitetura das pequenas moradias. Na entrada de Purmamarca, uma surpresa. Muitos, mas muitos turistas mesmo. De todas as partes, sobretudo, de outras regiões da Argentina. Caminhavam pelas ruas da cidade, estavam nas feiras de artesanatos, nas lojas, bares e restaurantes. Um lugar incrível.

Entre montanhas, haveria uma cidade..

.. Purmamarca

Mais montanhas

Casas da região.

Os três aventureiros.

Chegada em Purmamarca

Peculiaridades..

Antes de conhecermos a cidade, fomos procurar um local para almoçarmos. Decidimos entrar em um restaurante, aparentemente chique, e na verdade era. O lugar tinha área fechada e coberta para as mesas, fomos permitidos a deixar as bicicletas na área aberta. E então pedimos o almoço. O cardápio era variado, não podíamos reclamar disso. Mas a comida era cara e com um gosto não muito bom. Uma decepção, pois além de estarmos mortos de fome, pagamos um preço alto e quase não comemos. Nem ao menos pudemos nos refrescar com uma bebida gostosa. O João decidiu pedir soda, o que imaginou ser uma espécie de limonada. Na verdade era uma água com gás horrível. Saímos insatisfeitos.

Resolvemos descansar na praça principal, um lugar aconchegante com muitas árvores, bancos e principalmente pessoas. Ficamos um bom tempo observando o movimento de turistas que aproveitavam para comprar roupas e artesanatos. Logo depois Aramis e eu saímos para conhecer a cidade, as lojas e sobretudo o Monte das Sete Cores, atrativo principal do local. Purmamarca é extremamente simples, sem muitos recursos, as ruas não são asfaltadas e as casas são simples. Algumas lojas e hotéis têm uma estrutura melhor para receber os turistas. Os artesãos são em maioria indígenas e vendem suas obras na praça. Não é preciso muito conhecimento para saber que a cidade funciona economicamente à base do turismo. Subimos até um mirante onde é possível observar plenamente quase toda a cidade e o belíssimo Monte com suas sete cores bem destacadas. Parece uma pintura detalhadamente trabalhada. Simplesmente sublime, algo totalmente diferente de tudo que já tinha visto. Apreciamos muito e registramos por diversos ângulos essa obra da natureza.

Feira de artesanatos

Comércio

Feira.

Variedades

Entre as pequenas ruas..

Produção local.

Hotel..

.. destaque pra arquitetura.

Em direção ao ..

.. Monte das Sete Cores. Fantástico!

Conhecendo e curtindo a cidade.

As belezas da natureza.

A pequena cidade entre as montanhas ..

Monte das Sete Cores

Retornamos à praça e encontramos o João que ficou cuidando das coisas. Descansados saímos à procura de um lugar para pernoitar, cogitamos a igreja na frente da praça, mas logo essa opção foi descartada pela impossibilidade de acampamento no local. Na própria praça era complicado pois existia a circulação de muita gente. Sem dinheiro sobrando, um hotel era inviável. A solução foi saber sobre a existência de algum camping, fomos orientados a procurar um próximo ao Monte das Sete Cores. Combinamos um preço com o dono do lugar e resolvemos ficar. Era a primeira vez que ficávamos em um camping propriamente dito. Acampamento montado, cada um toma seu banho e se arruma para sairmos novamente, dessa vez para jantarmos.

Camping

"Tchau, amanhã tem a subida de Lipán."

Vizinhos argentinos que não deram sossego.

Nas ruas, o clima é muito bom, turistas de todas as partes, pessoas impressionadas com as belezas naturais, a cultura e a gastronomia. Encontramos um cicloturista argentino muito simpático, estava chegando de uma viagem pela América Latina, mas seu destino final não seria Purmamarca, conversamos, contamos algumas histórias de viagem. Nos disse do preconceito que sofreu na América Central quando não acreditaram que era argentino em razão da sua cor negra e taxaram-no de terrorista, entre outras aventuras. De um modo muito fácil, o argentino consegui uma hospedagem gratuita em uma casa para onde se dirigiu depois de nos despedirmos.

Cicloturista argentino.

Dessa vez encontramos um lugar para comer. Era bem mais simples que o restaurante onde almoçamos. Na verdade, mais parecia uma lanchonete e pedimos lanches que tinham no cardápio, todos repetiram a dose. Estava ótimo e o preço em conta. Satisfeitos fomos dar uma volta pela cidade e ver o movimento. Depois nos direcionamos ao camping que estava mais cheio do que na hora que chegamos. Não era pra menos, ficava quase ao lado do principal atrativo turístico da cidade. Logo cada um segue para sua barraca, está na hora de dormir. O dia seguinte não seria nada fácil, vencer a temida Cuesta de Lipán.

Caminhando..

A noite não foi nada tranqüila. Um grupo de pessoas provenientes de Buenos Aires que estavam acampadas no mesmo lugar, resolveu fazer um luau com direito a fogueira, bebidas e violão no centro do camping. O problema é que a música nada baixa durou a madrugada inteira. Impossível de dormir, o barulho acabou somente na hora que levantamos. Achei uma total falta de respeito dessas pessoas com os demais acampados.

Acordamos muito cedo pois o décimo primeiro dia não seria fácil. A cordilheira dos Andes em sua essência. A Cuesta de Lipán, uma montanha com 2 mil metros de ascensão. Ainda estava escuro quando saímos para pedalar, rapidamente encontramos a ruta 52. O tempo não ajudou muito desde as primeiras horas do dia. Minutos depois de retornarmos à rodovia, começa a chuviscar, ventava e estava frio.

Purmamarca estava a pouco mais de 2.000 metros de altitude, o topo de Lipán estava à 4.170 metros. Era aproximadamente 2 mil metros de aclive distribuídos em quase trinta quilômetros de plena subida em forma de caracóis. A primeira fotografia foi tirada às sete horas da manhã, era o trecho inicial de Lipán. Com o tempo muito fechado, extremamente nublado, as nuvens carregadas eram visíveis bem próximas da estrada. Era como estar pedalando nas nuvens literalmente. Cactos, montanhas de vegetação rasa, vales e névoas faziam parte da paisagem. Pedalamos juntos, nós três apenas os primeiros metros de Lipán, depois cada um seguiu no seu ritmo.

Enfim, subindo Lipán.

Começam os caracóis.

Pedalando entre as nuvens ..

.. literalmente.

E daqui pra frente o tempo fecha completamente.

Não foi fácil pedalar uma subida por mais de vinte quilômetros. O começo pedalava tranqüilamente, devagar, mas sem parar. Mas a cada cem metros a altura ficava maior e isso continuava a cada curva. Não demorou para a chuva começar pra valer, com ela vieram o frio e a necessidade de usar a jaqueta mais grossa que trouxera na bagagem, justamente para ocasiões como essa. A jaqueta era quase impermeável, isso ajudou a não ficar encharcado e conseqüentemente com mais frio. A pilha da minha máquina fotográfica estava quase acabando e como o tempo estava escuro, a cada clique existia a necessidade de flash e assim consumia mais energia. Com a chuva, fiquei sem fotografar por muito tempo.

Aumentava a altura, conseqüentemente o frio era mais intenso. Não era possível visualizar nada a não ser o asfalto poucos metros à frente. Sabia que estava subindo mas não podia ter uma idéia exata, pois a nebulosidade impedia ver qualquer horizonte que estava ficando para trás, imaginava-se que o abismo estava ao lado, embora não pudesse vê-lo. Alguns carros e caminhões passavam pelo local, mas o fluxo de veículos não era muito comum. Um automóvel com placa paraguaia diminuiu a velocidade e quase parou ao meu lado para perguntar se estava tudo bem, rapidamente ainda questionaram de onde era e pra onde estava indo. Ofegante respondi e avisei sobre os dois ciclistas que encontrariam à frente. A família era da capital paraguaia e estavam incrédulos com a minha presença sob aquelas condições. Algo compreensível.

Continuei seguindo em um ritmo muito lento. A cada cem metros praticamente fazia uma pausa para recuperar as energias. Era subida que não acabava mais. O frio ficava ainda mais rigoroso. E a chuva não dava sinal algum de que estava parando. Teve uma hora que parei para comer bolachas e descansar um pouco. Foi quando consegui enxergar um pouco do precipício que se formara logo ao lado de onde estava sentado. Cair em um local desse seria fatal e a visibilidade da pista era parcial, ou seja, o risco de um acidente era grande. Mas a confiança e esperança de chegar ao topo eram maiores. Em uma curva inclinada para subir um pouco mais, ouço a aproximação de um veículo. Percebo que diminui a velocidade, quando olho para trás sou surpreendido, é uma van com um indivíduo pela janela e uma câmera fotográfica profissional na mão. Estava registrando a minha presença e o esforço para vencer a temida montanha, que muitos diziam que levaríamos dias para concluí-la, outros mais pessimistas, falavam que jamais conseguiríamos passar por esse trecho pedalando. Quando o veículo passou ao meu lado, o rapaz me cumprimentou e seguiu viagem. Tenho curiosidade em saber como ficou aquela imagem.

São horas de subidas, quando percebo que não tem mais pra onde subir. Pedalo mais alguns metros e encontro o marco indicando o topo da Cuesta de Lipán, uma emoção indescritível, eu estava a uma altura de 4,170 metros sem nível do mar. Altos Del Morado, ruta 52 na província de Jujuy, norte da Argentina. Ainda está tudo nublado e a visibilidade não é boa quando registro com a câmera fotográfica a grande vitória. Afinal foram meses e milhares de quilômetros em treinamentos para conseguir superar momentos como aquele. Era sim uma vitória para mim. Minha pilha não resiste e acaba a energia. Troco as já descarregadas para ver se consigo tirar mais algumas fotos e nada. É quando surgem dois carros, pra minha sorte, de turistas brasileiros de Minas Gerais. Fizeram uma parada para também registrarem o momento. Ficaram surpresos com a minha presença, lembro da moça que perguntou assustada se eu não estava passando mal com a altitude, tranqüilamente menciono que estava bem. E realmente eu estava bem, cansado pelas horas de subida, mas em nenhum momento senti algum efeito mais drástico da altitude. E moça que me fizera a pergunta, muito pelo contrário, estava sentindo-se mal. Talvez tenha sido esse o motivo da forma assustada de como se dirigiu a mim. Essa mesma moça me emprestou suas pilhas e tirou duas ou três fotos minha no marco e nas placas informativas. Explicou-me que não poderia dar as pilhas pois eram as únicas que dispunha. Claro que não me importei, fiquei super feliz pela coincidência de passarem no local justamente na hora que eu mais precisa. Agradeci e desejei boa viagem.

5 horas depois de pedalar ..

.. 25 km de subidas.

Finalmente os 4 mil metros de altitude..

.. foram alcançados. Inesquecível.

Fiquei mais alguns minutos no local apreciando e saboreando a minha vitória. Uma sensação sem igual. Estava todo molhado, assim como meu alforje, frio por todo o corpo e desse modo, eu tinha conseguido. A emoção era tão grande que assim que voltei para a estrada comecei a chorar. Era um choro de felicidade, emoção pura, sensação de superar seus próprios limites, de ultrapassar obstáculos com sua força física e mental. O resultado de muito tempo dedicado para aquela situação. Estava feliz.

Começava a descer e do outro lado da montanha, de forma surpreendente era possível visualizar, ainda não perfeitamente a forma de caracol da estrada ao fundo do precipício. Paro e faço mais algumas trocas nas pilhas pra ver se consigo registrar a estrada. Não consigo e resolvo aproveitar a descida. São alguns quilômetros de declive, mas a velocidade não alcança médias muito altas. A existência de curvas nos obriga a utilizar o freio constantemente. Seria cômico se acontecesse um acidente justamente na descida, depois de todo o esforço para subir.

Logo no final da descida uma reta imensa e ao fundo uma nítida imagem de uma área enorme na cor branca. Era o deserto de sal, Salinas Grandes era nosso local para pernoitar, meus companheiros deveriam estar a algum tempo no local. Conforme vou me aproximando, tudo vai ficando branco, mais uma imagem incrível. Tudo ao redor era sal, um verdadeiro deserto. Uma construção do lado esquerdo me chama atenção, ninguém no local responde meu chamado. Meus amigos não estavam ali. Um pouco mais pra frente uma outra construção, bem maior do que a anterior. Vejo o Aramis ao lado do que já foi um restaurante todo feito de sal, algo muito interessante. Embora o local fosse um ponto turístico para aqueles que passavam pelo local, estava abandonado e inutilizado. O acesso a seu interior era permitido, acabamos entrando e montando acampamento ali dentro mesmo. Acabamos sendo uma atração turística para quem visitava o restaurante.

Salinas Grandes ao fundo.

Deserto de sal.

Não me recordo perfeitamente, mas o João alcançou o topo de Lipán com pouco mais de três horas, o Aramis quatro e eu cinco. O João, no entanto, passou por uma situação muito perigosa, como estava apenas com uma blusa de moletom, acabou ficando encharcado com a chuva e conseqüentemente começou a sentir muito frio. Chegou ao topo com sinais de hipotermia, ou seja, ausência de calor no corpo, algo extremamente perigoso, em muitos casos, o resultado é fatal. A sorte do João foi encontrar ajuda com um motorista que também parou no topo e ajudou-o com blusa e bebida quente. Aquilo não era brincadeira de criança. Estávamos arriscando nossas vidas.

No restaurante de sal, tiramos muitas fotografias, afinal tudo era feito de sal, as paredes, colunas, mesas, cadeiras e até o chão era de sal. Uma construção incrível. Deixamos as coisas na barraca e fomos caminhar pelo salar. Nem parecia o mesmo tempo de minutos antes em Lipán. O tempo já estava claro e o sol brilhando sobre a água da chuva no salar. Em quase todos os desertos, não é comum chover, mas em nossa passagem pelo local, a mãe natureza se encarregou de modificar a condição climática.

Acredite, restaurante feito de sal.

Tudo, inclusive mesas e cadeiras..

.. feitas de sal.

Como estava abandonado, montamos acampamento.

O chão não poderia ser diferente.

Los hermanos.

Alguns turistas também caminhavam pela imensidão de sal, todos surpresos com a quantidade de sal. Ao lado do restaurante maquinas e trabalhadores extraiam esse composto cristalino de sódio, que certamente vai parar na cozinha de muitas pessoas em diversos lugares. A vida desses trabalhadores no salar não é fácil, a periculosidade é enorme, por isso a maioria trabalha com os rostos cobertos e de óculos escuros para evitar queimações pelo corpo, provocadas pela claridade refletida pelo sal. Para além da parte física, essa atividade econômica no salar não destina seus fins lucrativos aos trabalhadores que tem um salário irrisório por uma jornada extremamente laboriosa.

Sal..

.. para todos os lados.

Chuva em pleno deserto.

Salinas Grandes.

Parece neve, mas é sal mesmo.

Escultura a base de sal, é claro.

É local de trabalho para algumas pessoas.

O décimo segundo dia foi marcado principalmente pela presença de um animal típico dos Andes, a Lhama, um ruminante encontrado geralmente no Peru, Bolívia e Argentina. Logo que saímos de Salinas Grandes nos deparamos com a uma dezena desses animais nas pastagens ao lado da rodovia. Nosso destino no dia era chegar na última cidade da Argentina antes da fronteira com o Chile, Susques. Foram 74 km’s de muitas subidas, inúmeros cactos e a incrível sensação de pedalar pelos Andes. As montanhas eram as únicas companhias, quase não havia veículos e muito menos população na região. De vez em quando uma ou outra moradia aparecia no meio do nada. Quando essas casas isoladas surgem no horizonte, acabam nos revelando a capacidade do ser humano de sobreviver em terrenos que nos parecem inóspitos. A região montanhosa em que estamos é de um terreno árido, onde os cactos nos dão a sensação que são as poucas espécies que conseguem se desenvolver sob essas condições.

Lhamas, eu conheci.

Aqui elas são frequentes.

Moradias em locais inóspitos.

O trecho até Susques é quase todo em meio a montanhas, que por sua vez são repletas de cactos. Em algumas partes da estrada é nítida a ação do homem na natureza ao abrir espaço para a construção da rodovia. Muitas subidas continuam marcando o cansativo trecho.Ao horizonte vemos apenas montanhas e mais montanhas. È mais um dia de pedal solitário, percorro apenas poucos quilômetros na companhia do Aramis. O asfalto não é ruim, mas não tem nenhum tipo de faixa, talvez seja pelo fato de ser novo, como imagino que seja. Nenhum problema pelo caminho e antes de Susques encontro o Aramis e chegamos juntos na cidade.

Paisagem

Entre rochas e cactos.

A curva mais acentuada por onde pedalei.

A pequena cidade de Susques é marcada por ser o pórtico de Los Andes, como indica a frase pintada no alto de uma montanha, visível àqueles que adentram ao povoado. Logo na entrada cruzamos por um rio de uma água barrenta e um campo de futebol, sinalizando que até nos pontos mais remotos da terra, esse é um esporte praticado por muitas crianças e adultos.

Chegando em Susques

Não poderia faltar o campinho de futebol.

Não existe asfalto em Susques, as casas de adobe são simples e poucas lojas formam o comércio da cidade. Almoçamos em um pequeno restaurante, o cardápio de sempre. Perguntamos na aduana se precisávamos informar a nossa saída do país, uma vez, que era a última cidade antes de atravessarmos a fronteira com o Chile. Fomos informados que em Paso de Jama deveríamos deixar o permiso. Passeando pelas poucas ruas, de terra, uma igreja chama nossa atenção, não apenas por sua característica arquitetônica, mas por parecer uma construção muito antiga. Descobrimos que é datada de 1598, época dos primeiros colonizadores espanhóis, é um patrimônio histórico nacional, visitado pelo Papa João Paulo II. Embora as ruas sejam de terra, são charmosas e nos remetem a uma realidade distinta da qual estamos acostumados na cidade onde vivemos.

Susques.

A última cidade argentina antes da fronteira com o Chile.

Portico de Los Andes

A centenária igreja visitada pelo Papa.

Aramis e João aproveitam para sacar dinheiro em um caixa eletrônico. Antes de sairmos em busca de um lugar para ficar, ainda passamos em uma cabine telefônica para mandarmos noticias aos familiares.

Nos informaram que na saída da cidade havia um hotel, fomos conferir. O local parecia agradável, mas o preço não era nada sugestivo, o Aramis ainda propôs pagar minha parte, visto que estava sem dinheiro extra. Mas acabamos optando em passar a noite atrás do posto de combustível que ficava ao lado do hotel/restaurante, onde fomos autorizados a ficar. Com banheiro ao lado ficou fácil a nossa acomodação sem pagar por isso. No restaurante os camaradas pediram uma espécie de misto quente, como não era barato, fiquei apenas fazendo companhia. No local havia uma janela destinada para o pessoal colocar os adesivos de suas aventuras, pessoas de vários países tinham passado por aquelas bandas, inclusive uma turma de Marechal Rondon e Foz do Iguaçu. Infelizmente não preparamos nada parecido para deixar nossa marca. Mais tarde no posto de combustível encontramos um motociclista de São Paulo com a sua Diabla, uma Yamaha toda personalizada. Nos reencontraríamos em São Pedro de Atacama dias depois.

Hotel e restaurante após a saída da cidade.

Uma noite tranqüila e descansamos para o dia seguinte. De madrugada começamos a preparar a bagagem e desmontar acampamento. Estava muito frio mesmo e meus dedos já começavam a congelar na hora de colocar o alforje. Saímos juntos, como todos os dias, mas logo nos separamos. Fiquei para trás por um tempo, mas dessa vez foi para tirar algumas fotos. Um nascer do sol entre as montanhas dos Andes é imperdível. Esse décimo terceiro dia ficaria marcado pelo frio da manhã, passando o belo Salar de Olaroz, não agüentava mais minhas mãos congelando. Estava apenas com a luva de ciclismo que cobre somente metade dos dedos. Então comecei a pedalar o mais rápido possível para encontrar um local onde o sol já tivesse superado a altura das montanhas. No caminho encontrei o Aramis e o João fazendo uma pausa para comerem umas bolachas, o nosso típico café da manhã. Não parei e mal expliquei o motivo. Mas literalmente meus dedos estavam congelados, pareciam que a qualquer momento eles poderiam quebrar. Foi quando finalmente encontrei uma claridade na estrada, parei e comecei a esfregar minhas mãos para aquece-los. Essa atividade deu certo e então pude prosseguir tranqüilo.

Começava um dos dias mais frios da viagem.

Salar de Olaroz. As montanhas impedem a chegada do sol e meus dedos congelam.

A estrada continuava calma, sem acostamento, mas com asfalto muito bom. Tráfego de veículos bem raramente. As placas na estrada indicavam a presença de Lhamas, encontraria algumas mais para frente. O João logo me alcançou, mas nem sinal do Aramis. Estava quase no mesmo ritmo do João, acho que o frio intenso fez com que o cérebro mandasse uma energia extra para as pernas. A paisagem continuava nos surpreendendo. Quase oito horas da manhã e avisto no horizonte uma montanha coberta de neve. Comecei a ficar ansioso para chegar mais perto e perto para poder presenciar aquele fenômeno novo para mim de um ângulo privilegiado. Não encontrei aquela montanha especificamente, mas tantas outras apareceram com a mesma forma e bem mais próximas. Outra paisagem marcante, são os lagos que se formam na época do degelo das montanhas que refletidas por essas águas nos causam um cenário imperdível para fotografar.

Magnífico.

Lagos provenientes do degelo das montanhas.

Estamos no altiplano andino, retas se tornam freqüentes, mas depois de tanta subida, quem se incomoda com elas. O frio parece mais evidente a cada montanha coberta de gelo. O tempo estava aberto, mas mesmo assim não esquentava a sensação térmica. Mas continuamos em frente. Um casal de cicloturistas estava fazendo o mesmo percurso que o nosso naquele dia, mas estavam em direção à Susques. Ele era da Espanha e ela da Alemanha, já estavam pedalando desde o Equador. Trocamos algumas informações sobre as condições das estradas e recebemos notícias boas e outras nem tanto. A boa é que na divisa entre Argentina e Chile havia um lugar para montarmos acampamento, atrás da aduana argentina. Ainda conseguiríamos água e comida. Uma surpresa para a nossa turma, pois era uma região que, segundo, relatos, não havia nada, principalmente água. A notícia não muito boa era sobre o trecho para São Pedro de Atacama, com muita subida pelo caminho, chegando a 4.800 metros de altitude.

A primeira montanha com gelo do caminho.

Simplesmente memorável pedalar nos Andes.

Cicloturistas da Europa

Tiramos algumas fotos com os camaradas europeus e cada um seguiu seu rumo. Na estrada passei pela Salina de Jama e também por cima da minha câmera fotográfica. Estava tirando algumas fotos, quando perco o equilíbrio da máquina e pronto, estava no chão e pra variar ainda passei os dois pneus por cima. Pensei, já era minha câmera. Mas para minha sorte, somente alguns arranhões e nenhuma lente quebrada. Dos males o menor.

Antes das três horas da tarde, Aramis e eu chegávamos ao último destino na Argentina, Paso de Jama, fronteira com o Chile. O João é claro já estava no local nos aguardando. Poucos metros da aduana, ainda na estrada, um peruano encosta o carro ao lado do Aramis e pergunta se não queremos alguns salgados. Mortos de fome, nem precisamos pensar duas vezes.

Finalmente, Paso de Jama. Fronteira Argentina/Chile.

Na aduana nos informamos sobre qual procedimento seguir. Entramos em determinada fila para registrar a nossa saída do país, entregando o permiso e pronto. Sem complicação, só precisamos aguardar um tempo na fila, onde encontrarmos o peruano dos salgados que trocou uma idéia com o Aramis. Nem lembro se pedimos alguma autorização para montarmos acampamento atrás da aduana. Acho que foi para um policial, de qualquer modo, não tivemos complicações pra isso também.

Na frente da aduana, muitos ônibus de turismo e carros de passeio, todos com turistas legalizando sua situação perante a lei argentina. Ainda era possível encontrar algumas barraquinhas vendendo dos mais diversos produtos, de bala, chiclete e pilha até pedaços de pizza. Comprei bolacha, se não me engano. Os camaradas pegaram uns pedaços de pizza, que o Aramis devorou igual um mendigo faminto. Isso que foram apenas 118 km’s de pedal no dia.

Montamos acampamento e deixamos tudo pronto parar passar a noite. De tarde o tempo estava bom, muito frio é verdade, mas nenhum sinal de chuva. Ao nosso lado na aduana, uma montanha enorme com o cume coberto de gelo, era um sinal que estávamos na Cordilheira dos Andes. A quatro mil metros de altitude.

A noite chegou com ventos fortes e logo depois foi a chuva. Isso resultou na pior noite da viagem para mim. Fez um frio extremo, onde não era preciso termômetro para saber que a temperatura estava negativa. Eu simplesmente não consegui dormir de noite de tanto frio. Fique me mexendo a noite toda para esquentar o corpo. Meus camaradas não sentiram esses efeitos, estavam preparados com saco de dormir e colchão inflável. A minha coberta era o item que fazia essas duas funções e sem um isolante térmico não poderia ocorrer outro resultado se não a baixa temperatura dentro da barraca, isso que eu estava com várias peças de roupas. Quando finalmente chegou a hora de levantar, uma surpresa, a montanha ao nosso lado estava completamente branca, coberta totalmente de gelo, evidência do frio extremo.

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4 comentários:

  1. Oi! Quando estive num aluguel Buenos Aires não passei pela Clorinda, onde é?
    Argentina é um pais muito interessante para conhecer!

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  2. Ler blogs como o seu é bom pq aprendemos.

    Então quando eu for fazer minha viagem pra outros paises latinos vou me lembrar de comprar luvas que cobrem os dedos pra que eles não congelem, de levar o capacete pra que policiais rodoviários não levem meu dinheiro, de utilizar recipiente com grande capacidade para carregar mais água...
    Tbm sei agora de alguns lugares que não posso deixar de passar...
    Vlw Nelson!

    Jonas

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  3. Atravessou a Argentina e nem p/ comprar uma bandeira p/fazer companhîa às outras?
    Criticou o João que pedalou na chuva, encharcou a blusa e quase teve hipotermia e foi acampar nos Andes com uma barraquinha do Carrefour, sem isolante térmico e sem saco de dormir? ^____^

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    1. Salve, salve, Anônimo. Beleza?

      Na verdade a bandeira da Argentina não foi encontrada. Procuramos, mas infelizmente não achamos. Paciência. Em relação ao João, não foi uma critica e sim uma observação do episódio vivenciado por ele. Sobre a questão do acampamento, realmente foi uma decisão arriscada e que na época se justificava pela condição financeira. Anos mais tarde voltei aos Andes com um equipamento mais apropriado, como um excelente saco de dormir e isolante, contudo, a "barraquinha" continuou a mesma e aguentou muito bem, inclusive, temperaturas, negativas. Aprendizado serve para isso, aprimorar o que precisa e continuar com aquilo que convém. Abraço.

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